David Lynch e o suave culto à inquietação
Parece uma ironia trágica que o cineasta David Lynch (1946-2025) tenha morrido justamente neste momento em que labaredas consomem ainda Los Angeles, cenário de tantos de seus maiores filmes, capturando o fino pesadelo dentro daquelas paredes, que sabemos agora quão frágeis eram - mesmo as mansões.
Muitas vezes, Lynch parecia filmar os próprios pesadelos, tamanha a estranheza e a perplexidade que causavam em nós, espectadores, levando-nos delicadamente pela mão para estes universos paralelos, habitados por criaturas estranhas, mergulhadas em tempos perturbadoramente suspensos, vítimas de obsessões ou maldições que nunca procuravam amparo em nenhuma lógica cartesiana.
É quase bizarro que alguém com uma imaginação tão inquietante tenha encontrado um modo de seguir carreira em Hollywood, estabelecendo seu lar numa L.A. onde ele não nasceu. Na verdade, Lynch fez um percurso singular, começando pela cidade natal, Missoula, em Montana, deslocando-se pelo país como estudante de artes plásticas e pintor antes de finalmente aterrisar em L.A. como bolsista do American Film Institute, onde seu projeto de curso foi nada menos do que seu acachapante filme de estreia, Eraserhead (1977). Uma tremenda carta de apresentação no mundo do cinema que ele iria transformar.
A partir daí, ele faria filmes que confundiam e encantavam na mesma medida - esse é o meu caso, pelo menos. Você sentia que não estava “entendendo” nada e, ainda assim, não conseguia deixá-los de lado, muito menos esquecê-los. Continuavam a te assombrar por dias a fio. Anos, talvez, se pensasse neles, já que inscreviam uma marca indelével na nossa própria imaginação. O que era a prova de que havia neles algo vital, que superava o maneirismo de que alguns eventualmente o acusavam.
Filmes como Veludo Azul (1986) - que deu origem a uma das melhores séries já vistas, entre 1990 e 1991 -, A Estrada Perdida (1997), Cidade dos Sonhos (2002) e Império dos Sonhos (2006) como que descerravam o véu que recobria a fina camada da dita normalidade cotidiana, expondo a multiplicidade de criaturas assustadoras que, como os vermes embaixo de uma pedra num jardim, podiam ali viver ocultos e poderosamente transgressores. E o mais inquietante é que você não queria fugir, compartilhando a estranha sensação de que habitar esses filmes de algum modo te carregava em vôos profundos, ainda que assustadores, como que olhando o avesso de tudo, inclusive de si mesmo.
Assim, não é nenhum acaso que “lynchiano” tenha se tornado um adjetivo. Não há mesmo nenhum outro melhor para definir estes universos cinematográficos muito além de qualquer metaverso.
Los Angeles, a duras penas, sobreviverá. Mas sua paisagem desolada não poderá contar mais do que com o fantasma deste suave cultivador da inquietação. Ele talvez gostasse mesmo disso.