Um Filme Pode Mudar o Mundo
Tive a sorte de acompanhar a estréia mundial de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, em setembro de 2024, no Festival de Veneza. Por isso, quero refletir sobre a extraordinária repercussão desse filme admirável - que não era óbvia no seu lançamento mundial.
Fruto de uma longuíssima gestação de sete anos, atravessando um período sombrio de tentativa de cancelamento da cultura brasileira sob um governo neofascista, e percorrendo um cuidadoso processo de preparação, o filme desembarcou na laguna veneziana tão maduro e comovente quanto o magnífico livro que lhe deu origem, as memórias de Marcelo Rubens Paiva sobre sua intrépida e discreta mãe, Eunice Paiva - que, assim como sua magnética intérprete, Fernanda Torres, foi descoberta em escala mundial. Inclusive graças à impecável interpretação de Fernandinha, nenhuma das duas será esquecida. No Brasil, Eunice começa a emprestar seu digno nome a tudo, de prêmio a rodovia, com a proposta, neste último caso, de substituir o nome de um dos ditadores cruéis que propiciaram o assassinato de seu marido, Rubens Paiva, um dos centenas de mortos sem sepultura do hediondo regime militar de 1964.
Visto por mais de 5,5 milhões de brasileiros até aqui (começo de março 2025), exibido em centenas de salas pelo mundo todo, além de um sucesso inegável de público, crítica e premiações - até o inédito Oscar de filme internacional -, Ainda Estou Aqui reverbera também fora do acolhedor escurinho dos cinemas. Além de atrair espectadores antes ariscos diante do cinema nacional, o filme tem se tornado tema obrigatório de conversas e causado mudanças de atitude em tribunais até hoje excessivamente tímidos na investigação de crimes da ditadura, abrindo finalmente a possibilidade de punição para os assassinos de Paiva e de outros desaparecidos políticos. Jovens de hoje protestam diante das casas desses impunes culpados de ontem.
Pode um filme mudar o mundo?
A pergunta que tantas vezes volta à cena, curiosamente ressurge num momento em que se considera que as redes sociais comandam toda espécie de debate, do pessoal ao político. Mas tem sido, há meses, este filme de tema incômodo e confecção sensível que muitas vezes tem pautado essas mesmas redes no País, observando-se a força de seus inúmeros defensores para neutralizar os escassos vociferantes que o condenam - e que não raro sequer o assistiram. Ao despertar tantos debates, levando aos cinemas espectadores jovens que nasceram felizmente sob a democracia a descobrir um dos capítulos mais sinistros de um tempo recente - e que um governo anterior procurou reeditar com uma inominável tentativa de golpe em vias de julgamento -, Ainda Estou Aqui tem indiscutivelmente mudado o clima do País, de um modo que nem o diretor, nem sua equipe e todos os envolvidos na produção e distribuição do filme poderiam ter previsto neste nível, nesta dimensão. Afinal, um filme pode também ter um poder de cura para feridas represadas por tanto tempo.
E, por mais que a gente escreva, parece que as camadas de Ainda Estou Aqui não se esgotam. O que leva a pensar, afinal, que um filme pode sim mudar o mundo. O que quer dizer que ele suscita outros - e que seus realizadores peguem seu bastão de coragem e venham logo continuar a construir este mundo novo, mais generoso e solidário, de que tanto precisamos hoje.