16/09/2024

Abaixo os longuinhos em Berlim

Parece mentira que, a esta altura da história do mundo, ainda se tenha que levar a sério coisas fúteis como trajes de gala para sessões de tapete vermelho de festivais de cinema. Por isso, é mais do que bem-vindo o novo movimento feminino, agora no Festival de Berlim 2018, liderado pela atriz Anna Brüggeman, #NobodysDoll – ou seja, ninguém é boneca de ninguém – e que consiste apenas no seguinte: as atrizes, diretoras, técnicas ou convidadas dos filmes participantes se unem para recusar a obrigatoriedade de usar vestidos longos, justos, brilhantes, decotados e saltos altos para essas ocasiões. Cada uma vai vestida do jeito que quiser, inclusive de traje de gala, mas não por imposição.
 
Como este será o 68º. festival, só dá para dizer: demorou, né?
 
Claro que as alemãs não estão sós nessa parada, até porque outro grande festival, Cannes, tem um protocolo bem mais rígido nessa questão do figurino – eu mesma, como jornalista, já não pude assistir a um filme lá há alguns anos, em plena tarde, porque era uma sessão de gala e claro que eu estava de jeans e não “a caráter”. Isso acontece por lá e já rendeu protestos de artistas, como Julia Roberts, Kristen Stewart e Sasha Lane em 2016, quando elas entraram descalças no Palácio dos Festivais em solidariedade a convidadas do filme Carol que tinham sido impedidas de entrar na sessão por conta de não estarem de saltos altos.
 
A filosofia por trás do #NobodysDoll, no entanto, vai mais fundo do que um mero protocolo de vestuário – critica na veia a objetificação das mulheres pelo figurino, criando uma embalagem que valorize apenas seu aspecto físico. E aí o movimento alemão se filia diretamente, guardadas as devidas proporções, ao #MeToo e ao Time’s Up, que reverberaram na cerimônia dos Globos de Ouro, em janeiro, e sua sucessão de atrizes e também atores vestidos de preto em solidariedade na cruzada contra o assédio sexual em Hollywood.
 
Tudo indica que este ano esta discussão veio para ficar. Os festivais de cinema vão ter que encontrar espaço para que ela aconteça e vamos torcer que, ao contrário dos saltos altos, longos esvoaçantes e smokings, não seja apenas uma moda passageira. 

50o. Festival de Brasília coloca a crítica em discussão

Brasília – Entre as inúmeras atividades deste 50º Festival de Brasília, participei de duas mesas de discussão, uma sobre o Elviras, coletivo de mulheres críticas fundado aqui na capital da República há exatamente um ano, e outro sobre a crítica em tempos mais do que digitais.
 
No caso do Elviras, a sensação é de sucesso, afinal, hoje somos mais de 100 mulheres associadas num coletivo que, em todo o País, encoraja as moças a botarem sua cara e assinarem seus textos e reflexões sobre cinema. Deu para perceber que um trecho importante desse caminho foi trilhado, mas que ainda falta muito para fazer. Afinal, apesar do esforço, cerca de 74% de nós estamos concentradas no eixo do Sudeste (SP, RJ e MG), mais de 60% somos brancas e apenas 18% exercem a crítica com algum tipo de remuneração.
 
Então, continuamos no esforço de atuar mais positivamente na difusão de um desejo de camadas ditas periféricas de se lançaram à tarefa crítica, como de poder contribuir de todos os modos na formação, legitimação e acesso dessas pessoas à cultura e à informação.
 
Afinal, o mais importante é continuarmos lutando para encontrar formas para que olhares alternativos aos hoje dominantes na grande mídia possam se expressar.
 
Preocupações desse tipo e de outra ordem percorreram também o debate da crítica em geral, em que pudemos notar a ausência de youtubbers entre os 50 jornalistas credenciados para cobrir o festival este ano. Num debate em que a gente discutia justamente como a critica se desenvolve nos meios digitais, essa ausência foi particularmente sentida. Até porque o que se quer é somar, não dividir. Já chega a incompreensão que cercou a crítica quando a internet começou, vítima do preconceito de muitos, como se o suporte do papel legitimasse tudo.
 
Cerca de 18 anos depois do advento da internet, é lamentável que ainda haja tantos obstáculos a essa discussão. Muito feliz a iniciativa do festival de abrir espaço para isso, ainda mais porque, como acontece na vida, a gente tem mais perguntas do que respostas. Mas não se pode abrir mão de procurá-las, senão, nada acontece. 

Diversidade deu o tom no Cine Ceará

O 27º Cine Ceará, mais uma vez, foi um banho de cultura e integração latino-americana, com uma seleção afinada de títulos de vários países do continente. Transpirou uma temática de diversidade sexual, com vários filmes dividindo seus aspectos – caso do chileno Uma mulher fantástica, de Sebastián Lelio, que tem ao centro uma extraordinária atriz trans, Daniela Vega – que na vida real e também no filme, é uma cantora lírica. O filme, aliás, teve o condão de impulsionar uma discussão sobre o reconhecimento dos direitos dos trans no Chile, que ali não podem usar oficialmente os nomes correspondentes à identidade que assumiram.
 
Nos dois extraordinários filmes cubanos – Últimos dias em Havana, de Fernando Pérez, e Santa y Andrés, de Carlos Lechuga -, ambos igualmente com personagens gays, emergiu uma nota crítica a tudo que aconteceu e acontece em Cuba, econômica e politicamente, abrindo espaço para uma discussão ampla, que nunca perde de vista o amor à ilha.
 
Já o argentino e grande vencedor, Ninguém está olhando, de Julia Solomonoff, consegue condensar uma exploração da angústia pessoal, existencial, sexual e transnacional num filme que se dedica a romper fronteiras – em torno do admirável desempenho de seu protagonista, Guillermo Pfening, premiado como melhor ator num festival a que não faltaram ótimos desempenhos masculinos, particularmente nos filmes cubanos.  
 
Houve ainda a oportunidade de assistir a um raríssmo representante da filmografia da República Dominicana, O homem que cuida, de Alejandro Andújar, que, se não primou por maior brilho teve o mérito de trazer ao nosso conhecimento uma realidade social que muito se aproxima do Brasil, em termos de relações de classe.
 
Os dois concorrentes brasileiros, Malasartes e o duelo com a morte, de Paulo Morelli (SP), e Pedro embaixo da cama, de Paulo Pons (RS/RJ), com várias qualidades, parecem expressar o momento híbrido e de transição do país, buscando a própria voz no meio do turbilhão.

Balanço do Olhar de Cinema 2017

No recém-encerrado Olhar de Cinema de Curitiba, fiz parte do júri da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, portanto, durante o festival (de 7 a 15 de junho), não pude comentar, na minha cobertura, os filmes da competição principal. Aproveito agora para divulgar aqui também meu texto de balanço dessa competição, produzido para o blog da Abraccine (https://abraccine.org/):
 
 O festival confirmou sua vocação de explorador de novas linguagens e filmografias mais raras nas salas de cinema comerciais. Sua competição de longas, com 11 filmes, também se enquadrou nesta filosofia, trazendo uma original mistura de documentários, ficções e híbridos.
 
Mesmo entre os documentários “puro sangue”, caso do sírio “300 Milhas”, de Orwa Al Mokdad, do argentino “Soldado”, de Manuel Abramovich, do indiano “Máquinas”, de Rahul Jain, e do norte-americano “El mar la mar”, de Joshua Bonnetta e J.P. Sniadecki – este, o grande vencedor do festival –, manifestou-se um especial apreço pela linguagem, ainda que as razões para isso não fossem exatamente as mesmas em cada caso.
 
É visível, em “300 milhas”, que o cineasta, filmando dentro da Síria conflagrada pela guerra civil e ouvindo distintos participantes do conflito (militares, rebeldes, pacifistas), sintonizou a urgência do que tinha à mão, dentro de possibilidades em constante mudança, perto do perigo. Repórter para a Al-Jazeera e a BBC, Mokdad demonstra o instinto do imediatismo da reportagem e consegue colocar os espectadores do lado de dentro da guerra, sentindo o perigo roçando a pele. Este é o grande mérito do filme, que peca, no entanto, pela falta de uma maior clareza nesta articulação entre as partes em conflito.
 
Sem dispensar a urgência como tema, já que trata dos riscos corridos pelos milhares de imigrantes mexicanos que atravessam clandestinamente a fronteira com os EUA, “El mar la mar” faz uma opção decidida por uma linguagem fora da tradicional. Evita, assim, expor os rostos da maioria de seus entrevistados, que são tanto mexicanos quanto norte-americanos que vivem isolados em regiões fronteiriças, usando, no entanto, suas vozes, eventualmente em tela escura, sem qualquer imagem. No resto do tempo, retrata seus percursos, em locais desérticos, arenosos, montanhosos, cobertos de vegetação espinhosa, batidos por ventos frios e uma total escuridão. Assim, evoca as condições dos trajetos de pessoas a pé, que se perdem nesta paisagem inóspita, deixando para trás sapatos, água, documentos, roupas, amigos, parentes, ou mesmo a própria vida. Neste sofisticado trabalho da fotografia, também a cargo dos diretores Bonnetta e Sniacecki, o filme instaura uma atmosfera de compartilhamento que escapa de uma primeira impressão fantasmagórica, mergulhando o espectador na pele de seus personagens por uma espécie de efeito hipnótico desta impactante sobreposição de vozes e imagens com efeitos nunca meramente estetizantes.
 
“Máquinas”, um marcante trabalho de conclusão de curso do cineasta indiano formado e radicado nos EUA Rahul Jain, é outro título que coloca em paralelo a mais crua exposição de condições de trabalho degradantes, dignas da era da Revolução Industrial, em tecelagens de Gujarat (Índia), e a beleza eventualmente captada nos tecidos que são o resultado dessas excruciantes jornadas. Beleza e exploração convivem lado a lado no retrato destes operários desvalidos, alguns dormindo, exaustos, sobre os fardos de tecido que acabaram de produzir. Alguns depoimentos pontuam a expressiva narrativa visual, esclarecendo e aproximando o espectador, que não tem como não se sentir tocado por tudo o que se vê aqui.
 
Já o argentino “Soldado” investe numa aposta vertical no despojamento da narrativa, inserindo, como se fosse parte de sua pele, a câmera junto a um jovem soldado. Assim, entra no cotidiano do recruta, tocador de tambor na banda militar, de uma forma que evidencia, sem alarde, a profunda burocratização e, não raro, a estupidez de uma série de rígidos rituais cotidianos. Um exemplo claro está na sequência em que um oficial ensina ao jovem as três formas de arrumar sua cama, dependendo do dia da semana e sendo passível de punição, caso a norma seja desrespeitada. Toda a ideia de autoritarismo está, a todo momento, sendo sutilmente posta em cheque, ao mesmo tempo que se expõe a ingenuidade e inexperiência do soldado diante do mundo que se apresenta diante dele, não só dentro do quartel.
 
Interferência e distanciamento
Os dois híbridos de documentário/ficção, o brasileiro “Fernando”, de Igor Angelkorte, Julia Arlani e Paula Vilela, e o italiano “Vangelo”, de Pippo Delbono, trabalharam sua fusão com ênfase totalmente distinta. “Fernando” retrata o perfil do ator e professor de teatro carioca Fernando Bohrer, reproduzindo o cotidiano de uma personalidade envolvente e carismática. Ao mesmo tempo em que se apropria de “cenas reais” – como as aulas do protagonista e suas palavras, sempre naturalmente poéticas -, o filme permite-se liberdades, como mostrar o bailarino Rubens Barbot (visto em “Esse Amor que nos Consome”, de Allan Ribeiro) interpretando seu parceiro de vida, o que ele não é (o real não pôde filmar). Essas pequenas ficcionalizações não comprometem a verdade de um personagem nitidamente fascinante e que, por esse motivo, arrebatou o público do festival a dar ao filme o seu prêmio.
 
Título mais problemático da competição de longas, “Vangelo” ressente-se do peso e da manipulação excessiva do diretor Pippo Delbono ao longo de uma narrativa que incorpora seus problemas de saúde, um de seus espetáculos teatrais e seu relacionamento com um grupo de refugiados chegados à Itália. Há muitos momentos de egotrip neste filme, que supostamente refletiria uma tentativa de dar voz a estes refugiados. Mas o que se vê, na maior parte do tempo, é o diretor impondo a eles suas regras, de uma maneira em que o desconforto destes personagens torna-se muito evidente. Um pouco mais de silêncio e vontade de ouvir essas pessoas sofridas da África e da Ásia permitiriam talvez chegar mais perto do mistério de cada uma.
 
Entre as cinco ficções da competição, pelo menos uma, a franco-tunisiana “Corpo Estrangeiro”, da diretora Raja Amari, parte da história de uma refugiada, Samia (Sarra Hannachi). Sua sequência inicial, mostrando refugiados na água, é de um impacto inegável. O início da trajetória de Samia em Paris, contando com a ajuda de um compatriota tunisiano (Salim Kechiouche), parece promissor para revelar a saga destes personagens deslocados, destacando dilemas específicos da mulher diante da rigidez de alguns ambientes muçulmanos. Mas, a partir da entrada na vida de Samia de uma imigrante árabe radicada na França (Hiam Abbass), que se torna sua patroa e protetora, o filme perde força com uma série de soluções mágicas, num roteiro que peca por querer tratar de questões demais num único relato, faltando-lhe densidade para aprofundar satisfatoriamente qualquer uma delas.
 
Dois adolescentes deslocados e fugitivos estão no centro do drama turco “Grande Grande Mundo”, de Reha Erdem. O filme, vencedor do prêmio Abraccine no festival, é particularmente eficiente ao articular uma atmosfera a um tempo realista e repleta de simbolismo surreal, partindo da fuga dos dois irmãos órfãos de uma situação opressora, particularmente para a menina. Refugiados numa floresta, os dois são envolvidos numa atmosfera que remete ao realismo mágico, encontrando nas plantas e animais correspondentes para as emoções e sonhos dos dois irmãos, buscando refúgio de um mundo externo francamente hostil. A fotografia de Florent Herry, aliada a um roteiro devidamente ritmado, são os dois pontos fortes do filme.
 
Outro indiano, “Newton”, de Amit V. Masurkar, foi aparentemente o título mais convencional da competição, contando a história de Newton (Rajkummar Rao), um funcionário público que leva aos últimos extremos sua obsessão para a realização de eleições num ponto remoto do país, assolado por uma guerrilha intermitente. Ainda que recorrendo sem inibições a inúmeros clichês do fértil polo de Bollywood – especialmente no retrato dos coadjuvantes ao redor de Newton e no interesse amoroso deste por uma professora local -, o filme termina entregando mais do que promete. Isto ocorre especialmente no que se refere ao tom crítico da história, que retrata um país confrontado pela imensa ignorância de uma parcela considerável da população rural, a bitolação ou indiferença da maioria de seus funcionários públicos e a mão de ferro de sua força militar.
 
Realidade e delírio
Os dois outros competidores ficcionais recorreram a alguma raiz documental, expressada de maneiras bastante diferentes. Fortemente elaborado do ponto de vista formal, contrapondo imagens 16mm e super-8, além de aplicar riscos e outros efeitos sobre as imagens, o chileno “Rey”, de Niles Atallah, parte de um personagem real, o advogado francês Orélie-Antoine de Tounens (1825-1878), para compor uma espécie de cinebiografia delirante de um personagem idem, interpretado por Rodrigo Lisboa. No centro do relato está a obsessão deste advogado francês para unificar um imaginário reino da Araucânia e da Patagônia, do qual ele teria se tornado rei, apesar de tratar-se de um território habitado por indígenas na América do Sul. E, mostrando seu julgamento, no Chile do século 19, que é uma fonte de informações sobre o inusitado personagem, “Rey” é tudo, menos um filme de tribunal, com seus cenários teatrais, repletos de personagens mascarados.
 
Representante brasileiro entre as ficções, “Navios de Terra”, longa de estreia da cineasta e artista visual Simone Cortezão, igualmente mostra empenho em sua elaboração de imagens e sons para seguir uma narrativa fluida em torno de um marinheiro (Rômulo Braga), ex-minerador, que segue diferentes trajetórias, no mar, e finalmente, na terra, na China. Seguindo o fluxo dos encontros deste personagem, incorpora-se alguns marinheiros reais, que interagem com o ator-protagonista, contando histórias vividas de perigo e morte. Diversas imagens perduram na memória, especialmente na primeira metade do filme, algumas remetendo às interferências humanas no seio da terra e ao desastre ecológico de Mariana – que, em um momento, é visto na tela da TV a bordo do navio. 

Cannes faz silêncio pelas vítimas de Manchester

Cannes fez um minuto de silêncio pelas vítimas do atentado de Manchester hoje (23-5). Mais uma vez, o maior festival do mundo sintonizou com a política e o mundo ao redor, manifestando a vocação intrínseca dos palcos da arte, de todas as artes, para ser caixa de ressonância do mundo.
 
Para isso, foi divulgada uma nota de solidariedade em nome da direção do festival:
 
”O Festival de Cannes vem participar seu espanto, indignação e enorme tristeza na sequência de um atentado do qual foram vítimas o público e a cidade de Manchester na noite de ontem.
Mais uma vez, a cultura, a juventude e o espírito de festa que foram visados e atingidos. Como foram golpeadas a liberdade, a generosidade e a tolerância, todas as coisas às quais o festival e todos aqueles que o tornam possível – artistas, profissionais e espectadores – são profundamente ligados.
O Festival de Cannes convida assim a todos os seus participantes a dar testemunho de sua solidariedade em relação às vítimas, suas famílias e o povo britânico observando um minuto de silêncio nesta terça, 23 de maio, às 15h”.

Cannes não quer deixar a sala de cinema morrer

O acolhimento de dois filmes da plataforma Netflix na competição principal de Cannes – The Meyerowitz Stories, de Noah Baumbach, e Okja, de Bong Jooh-Ho - parecia celebrar o casamento perfeito entre o festival mais badalado do mundo e as novas formas de exibição e compartilhamento de imagens.
 
A relação azedou quando a plataforma bateu o pé e negou-se a lançar os dois filmes em salas de cinema na França – o que gerou um boato de que seriam retirados da competição, desmentido hoje pela assessoria de imprensa do festival. Os dois continuam, podem até ser premiados – se a coisa toda não gerar uma má vontade entre os jurados -, mas vai ficar por isso mesmo. O regulamento do festival foi mudado mas apenas para 2018 – sem lançamento em salas, nada de aproveitar o tapete vermelho da Riviera para pré-lançamento de filmes.
 
Não é coisa simples. Cannes, entrando na sua 70ª. edição, representa a indústria do cinema, especialmente o francês que, como todo mundo, não vê com bons olhos a concorrência ianque, ainda mais correndo em faixa própria. Todo mundo quer faturar um naco dos lucros e, na plataforma digital, só eles ganham. De repente, foi uma tardia e inesperada declaração de amor pela boa e velha sala de cinema, que Cannes não quer deixar morrer. Ainda bem.

Meu tipo de princesa

Carrie Fisher e sua mãe, Debbie Reynolds, com diferença de um dia. Este 2016 não cansa de nos surpreender... para pior.
 
Mas, em honra dessas duas lendas femininas, melhor justiça lhes faremos ao lembrar o quanto elas significam para a imagem das mulheres. As duas tinham 19 anos quando viveram os papeis que definiram suas carreiras: a princesa Leia Organa, para Carrie em Star Wars; e a atriz Kathy Selden, para Reynolds, em Cantando na Chuva.
 
Pode-se dizer que, de algum modo, Debbie passou o bastão a Carrie no sentido de não se contentar em parecer meramente boazinha e bem-comportada. E Carrie, franca e desbocada, encarnou na tela uma princesa que não se acanhava de usar uma arma e cuja cena preferida na saga era justamente aquela em que ela rompe sua escravidão, obrigada a vestir um biquininho, liquidando o vilão Jabba the Hutt, em O Retorno do Jedi.
 
Sempre nos lembraremos dela também como a impagável mulher misteriosa que atormenta, cheia de razão, John Belushi em Os irmãos cara-de-pau; como a coadjuvante espirituosa que rouba a cena em suas participações em Hannah e suas irmãs e Harry e Sally; e ainda como a frasista implacável, em suas participações na TV (como Rosemary Howard na série 30 Rock e no especial Wishful Drinking) e seus livros, em que fazia picadinho de suas memórias pessoais, de seus problemas de saúde mental e com drogas, suas relações familiares e com os homens de sua vida com um humor fino e honestidade cortante.
 
Bela herança você recebeu destas duas, cara Billie Lourd – por isso mesmo imagino como deve ser intolerável hoje sua dor. Faça justiça a essa sua linhagem, Billie. Na era Trump que em breve se inicia, seu país certamente precisará muito!. Ainda bem que Carrie e Debbie não vão ter que aturar isso...

Pra falar de quem chegou em 2016

Bom, o ano (sinistro!) está terminando. E não quero falar só de quem partiu – porque 2016 foi particularmente cruel, levando Ettore Scola, Jacques Rivette, Abbas Kiarostami, Ronit Elkabetz e outros.
 
Também é bom falar de quem chegou no cinema brasileiro, diretores e diretoras de primeira viagem cujos trabalhos chegaram nas telas com força. Caso de Anita Rocha da Silveira, com um drama social com pegada de ficção científica cheio de personalidade (Mate-me por favor); Juliana Rojas, em sua primeira direção solo no saboroso musical ambientado num cemitério, Sinfonia da necrópole, que põe em questão a especulação imobiliária; Aly Muritiba, arrebentando em sua primeira ficção, Para minha amada morta; André Novais Oliveira, mantendo a pegada criativa de seus curtas na narrativa de seu primeiro longa, Ela volta na quinta; e Marina Person, esbanjando honestidade em Califórnia, seu primeiro longa de ficção, segundo da carreira.  
 
Com certeza, são todos trabalhos para figurar na lista dos melhores do ano, ao lado de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, Ausência, de Chico Teixeira, Boi Neon, de Gabriel Mascaro – todos segundos longas de diretores maduros (no caso de Mascaro, segunda ficção) -, Mãe só há uma, de Anna Muylaert, Campo Grande, de Sandra Kogut, Big Jato, de Cláudio Assis, e Trago Comigo, de Tata Amaral.  
 
Pelo menos na arte, 2016 não deu perda total pro Brasil. Muito pelo contrário!!!

A constelação Abbas Kiarostami

 Há perdas que são como estrelas que se apagam. Outras, como se o céu inteiro escurecesse de repente. É o que acaba de acontecer hoje, com a morte do sublime Abbas Kiarostami.

Ele tinha essa marca original dos que eliminam fronteiras sem alarde – como entre ficção e documentário. Quem se importa, se tudo o que se passa na tela é necessariamente uma construção ? A diferença é que ele cometia essa e outras transgressões com uma elegância rara e um espírito de explorador que procurasse desvelar um território novo a cada imagem.
 
O legado de Kiarostami não é um qualquer e não só pelo número de filmes ou prêmios acumulados. Um olhar por uma obra que congrega Gosto de Cereja, Close Up, Através das Oliveiras, O vento nos levará, Dez, Cinco e Cópia Fiel, mais do que fechar um arquivo abre caminho para a necessidade de uma constante volta a alguns desses títulos indeléveis de sua cinematografia, dessas que foi capaz de irrigar o cinema do mundo a partir do Irã e inscrever seu nome como um dos maiores da virada do século 20 ao 21.