07/02/2025

A constelação Abbas Kiarostami

 Há perdas que são como estrelas que se apagam. Outras, como se o céu inteiro escurecesse de repente. É o que acaba de acontecer hoje, com a morte do sublime Abbas Kiarostami.

Ele tinha essa marca original dos que eliminam fronteiras sem alarde – como entre ficção e documentário. Quem se importa, se tudo o que se passa na tela é necessariamente uma construção ? A diferença é que ele cometia essa e outras transgressões com uma elegância rara e um espírito de explorador que procurasse desvelar um território novo a cada imagem.
 
O legado de Kiarostami não é um qualquer e não só pelo número de filmes ou prêmios acumulados. Um olhar por uma obra que congrega Gosto de Cereja, Close Up, Através das Oliveiras, O vento nos levará, Dez, Cinco e Cópia Fiel, mais do que fechar um arquivo abre caminho para a necessidade de uma constante volta a alguns desses títulos indeléveis de sua cinematografia, dessas que foi capaz de irrigar o cinema do mundo a partir do Irã e inscrever seu nome como um dos maiores da virada do século 20 ao 21.

Réquiem para Ronit Elkabetz

Num ano que está se mostrando particularmente sinistro, inclusive em perdas de artistas, mais uma tristeza: morreu hoje, com apenas 51 anos, a extraordinária atriz israelense Ronit Elkabetz. Tinha apenas 51 anos e foi vítima de câncer.
 
Ronit estrelou e co-dirigiu (com seu irmão, Shlomi) um dos melhores filmes lançados no Brasil no ano passado, o drama O julgamento de Viviane Amsalem – que pode ser conferido, em DVD, TVs a cabo e outros meios.
Trata-se de um retrato contundente do pesadelo a que uma mulher é submetida em Israel apenas por querer divorciar-se, já que ali inexistem tribunais civis para isto. Ou seja, são juízes religiosos, ultraconservadores e machistas que comandam o espetáculo, tentando obrigar Viviane (Ronit) a simplesmente render-se e voltar a viver com o marido (Simon Abkarian), que malandramente lhe nega o divórcio.
 
Nada mais eloquente para ilustrar a inacreditável sobrevivência de um sistema incrivelmente arcaico e opressor, que reafirma o poder messiânico dos juízes, dos tribunais e dos costumes, quando se recusam a acompanhar o movimento do mundo, a pluralidade da realidade. Uma amostra, também, de como a lei e a religião, ainda mais em conjunto, funcionam como instrumentos de dominação. E o trabalho de Ronit é, no mínimo, dilacerante. Não percam.

Agora, sem Rivette

2016 tá bravo! Primeiro Scola, agora o Jacques Rivette se vai.
 
Era um dos mais elegantes membros da Nouvelle Vague, aquela geração que passou da crítica à direção, calando a boca dos que repetem aquela velhíssima bobagem – que críticos são cineastas frustrados; Quase nunca são. Rivette, Truffaut, Chabrol, Rohmer e Godard, o último deles, não mesmo.
 
Para mim, a característica mais marcante de Rivette era a forma finíssima com que conseguia intercalar as artes na tela. A mais eloquente manifestação desse talento pertenceu a A Bela Intrigante (91), um magnífico e denso diálogo entre a literatura (o enredo se inspira em Balzac), pintura e o cinema, equilibrado ao longo de quatro horas que nunca são maçantes, em torno de um velho pintor (Michel Piccoli), sua mulher (Jane Birkin) e uma nova e sensual musa que posa com toda a sua carnalidade para ele (Emmanuelle Béart).
 
Um dos meus preferidos é Quem Sabe? (2003), em que a trama brinca sobre as relações entre o teatro e um homem e uma mulher (Sergio Castellito e Jeanne Balibar). Seu último filme, inédito aqui comercialmente, 36 Vues du Pic Saint Loup (2009), igualmente adorável, flerta com o cinema e o circo, e escalava novamente Jane Birkin e Sergio Castellito.
 
Saudade. Mas quero crer que os cineastas sublimes são eternos.

Saudade de Ettore Scola

Tive a honra de conhecer Ettore Scola pessoalmente, numa noite, creio que em 2000, quando cobria o Festival de Veneza e, junto com amigos críticos, o descobrimos jantando no mesmo restaurante que nós. Conversamos com ele – era irresistível tentar – e ele, gentilmente, tirou uma foto conosco (essa aí ao lado), que guardo até hoje como um troféu desta minha profissão, tantas vezes ingrata e incerta, mas capaz de proporcionar esses momentos mágicos.
 
Hoje, tanto o L”Artigliere, o ótimo restaurante do Lido e seu terraço coberto de plantas, quanto Scola, são memória. Uma memória, no caso do magnífico diretor, iluminada por filmes que me formaram, nutriram e continuarão a fazê-lo pelos anos futuros.
 
Ficam marcados no meu DNA obras tão variadas, e densas e engraçadas, pulando de um gênero a outro com a liberdade e perícia de um mestre: Nós que nos amávamos tanto (74), Feios, Sujos e Malvados (76), Um dia muito especial (77), O Terraço (81), Casanova e a Revolução (82), O Baile (83), A família (87), A viagem do capitão Tornado (90), O Jantar (98), Concorrência desleal (2001), até o último, Que estranho chamar-se Federico (2013) - em que ele faz uma delicada e divertida homenagem ao amigo Federico Fellini, protagonizando, na coletiva de lançamento do filme, em Veneza, um dos mais altos momentos daquele festival, pela inteligência e qualidade de suas lembranças. (Clique aqui para ler o texto que escrevi na ocasião)
 
Não há muito o que dizer da partida de um dos grandes de uma magnífica geração italiana, a não ser que é preciso ver e rever seus filmes para sempre. Em alguns, dá vontade de morar neles, como num sonho.

Woody Allen aos 80

Woody Allen faz 80 anos. Nem ele mesmo talvez achava que iria tão longe na vida e na carreira cinematográfica, que já emplacou 50 anos - a primeira investida, o roteiro original da comédia Que é que há, gatinha? de 1965. Ele continua firme e forte. E, o que é melhor, com público.
 
A rigor, ele pode não ser um gênio, nem um desbravador de caminhos ou um esteta, mas é um sobrevivente, sem dúvida, inclusive das próprias crises, que continua conseguindo exercer seu meio de expressão despreocupado dos modismos – coisa que não é para qualquer um, especialmente para os desprovidos de criatividade ou imaginação. E também sem se poder acusá-lo de passadista, embora certos temas, é claro, passem longe de seus filmes. Ele simplesmente ignora as redes sociais e outros fenômenos obsessivos da modernidade. Meio que paira sobre eles, falando de outras coisas que permanecem, a natureza humana acima de tudo, explorada sempre pelo filtro da ironia.
 
E quando se pensa que já disse tudo, Woody surpreende com um trabalho de beleza poética como Meia-noite em Paris (2011), ou da densidade psicológica de um Blue Jasmine (2013) ou Homem Irracional (2014), dois títulos em que o diretor exerceu uma faceta mais sombria.
 
Enfim, parece que Woody vai ficar no posto dos diretores velhinhos e criativos, o panteão onde reinaram até pouquíssimo tempo os sublimes Manoel de Oliveira e Alain Resnais. Woody ocupava nesta trinca o lugar do palhaço e parece que vai rir por último, inclusive das previsões que, ano após ano, o dão por acabado.
 
Parabéns Woody!!!

A educação sentimental segundo Truffaut

François Truffaut é como Beatles – um clássico popular. E, no caso de ambos, uma espécie de educação sentimental de várias gerações, cada um na sua arte.
 
Dá para pensar muito em como Truffaut atravessa algumas das melhores emoções da nossa vida emocional ao percorrer as salas da imperdível exposição sobre o diretor francês, ainda em cartaz no MIS paulistano.
 
A exposição é uma revelação do caráter minucioso, obsessivo até, do diretor de Os Incompreendidos, Jules e Jim, A Mulher do Lado, Adéle H e de toda a saga Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), seu alter ego. Estão nas vitrines desde ingressos de cinema de sua adolescência até fotos, cartas, folhas de anotações de ideias e roteiros que vão nos mergulhando numa mente inquieta.  Estão lá depoimentos de seus amigos, como o roteirista Jean Gruault, além do próprio Truffaut em momentos saborosos – como quando foi pegar seu Oscar de filme estrangeiro, por A Noite Americana, situação de uma leveza adorável, num agradecimento brevíssimo mas espirituoso e doce, compartilhável. Tão diferente destes agradecimentos imensos e pomposos de tantos de seus colegas...
 
Os fragmentos de seus filmes, que se pode assistir numa telinha, com direito a fones de ouvido – tornando a experiência individual, quase como um confessionário (falta a cortininha, mas tem a penumbra) reacendem a memória desses filmes fundamentais que ele fez (vários estão sendo reapresentados simultaneamente também no MIS). Enfim, uma experiência audiovisual completa, que faz lembrar e muito a falta que ele nos faz.
 
Estão lá suas principais musas – Jeanne Moreau, Fanny Ardant, Isabelle Adjani, Claude Jade, Catherine Deneuve... -, com suas imagens vivas projetadas nessas pequenas telas, misturando-as todas, como se dentro da exposição vigorasse um tempo próprio, um tempo do qual a gente hesita em sair.
 
Uma das minhas seções preferidas é aquela dedicada a Jules e Jim, um de meus filmes favoritos de todos os tempos, que reserva uma sala àquela cena em que Jeanne Moreau canta Le Tourbillon de la vie e, ao lado, projeta-se, numa série de cortinas transparentes que a gente atravessa, outra cena linda, em que Jeanne e seus dois amores correm numa ponte.
 
Outro tesouro está nos trechos de gravações das históricas entrevistas de Hitchcock, a quem Truffaut dedicou um livro fundamental (Hitchcock e Truffaut), inconformado com o pouco caso dedicado pelos críticos ao diretor de Psicose e Um Corpo que Cai. Nessas gravações, é possível ouvir a voz de Hitch, a tradução simultânea impecável de Helen Scott e os comentários de Truffaut. Imagina que bom seria ter tempo e condições de ouvir todas essas conversas aos poucos !
 
Enfim, quem não viu ainda, corra, porque a exposição só fica em cartaz no MIS até dia 18 de outubro. Não dá para perder.

Quando protesto pode virar intolerância

 Como se esperava, Cláudio Assis foi fragorosamente vaiado ao vir apresentar seu novo filme, “Big Jato”, no Festival de Brasília. Vaiado a ponto de não conseguir falar. Está certo isso?
 
Minha impressão é de que o lamentável episódio em que Cláudio e Lírio Ferreira, dois diretores queridos e respeitados por seu trabalho, impediram o andamento de um debate de sua colega e amiga, Anna Muylaert, sobre seu filme “Que horas ela volta” – que já rendeu muito nas redes sociais – se esgotou.
 
Os dois se desculparam publicamente. Foram punidos pela Fundação Joaquim Nabuco, onde se desenrolou o fatídico debate. O que se deve querer mais? Autoflagelação em público? Banimento? Ora, vamos com calma. Está na hora de seguir adiante, falar de outra coisa. Se for o caso, protestar novamente, mas só se algum deles, ou outra pessoa qualquer, for reincidente numa atitude imprópria. O machismo, como se sabe, está entranhado na cultura mundial e tão cedo não vai acabar. Vamos guardar nossas armas para lutas melhores.
 
O “tribunal da internet”, como já disse alguém, por vezes é implacável demais. Julga, executa, sataniza, não dá chance a defesas e nunca absolve. Isto também é intolerância.

Em Cannes, glamour só no salto

Em pleno século 21, custa a crer que algumas situações constrangedoras ainda aconteçam em Cannes – como barrar mulheres que compareçam às sessões de gala de sapatilhas sem salto, ainda que de strass ou materiais semelhantes. Mesmo que se trate de senhoras de mais idade, elas são obrigadas a subir no salto, senão, não entram.
 
O mico aconteceu até com uma produtora, Valeria Richter, que havia tido parte do pé amputado, e da mulher de um dos diretores que apresentaram filme aqui, o indiano Asif Kapadia (autor do documentário Senna, de 2010, que agora radiografou a cantora Amy Winehouse em Amy). Sua esposa, afinal, entrou, mas foi exceção.
 
O diretor fo festival, Thierry Frémaux, também teve que pagar mico, pedindo desculpas em público, atribuindo os incidentes a um "excesso de zelo" dos seguranças. Mas, que o protocolo existe, lá isso existe. Dá para acreditar que ele possa permanecer imune a todas as mudanças dos últimos 70 anos ? Os rapazes, é bom que se diga, também não podem esquivar-se ao inevitável smoking, ainda que à luz do dia – se a sessão for a oficial, de gala, a do tapete vermelho. Não à toa, pode-se adquirir no comércio local, por escassos 10 ou 15 euros, uma gravatinha borboleta bem mixuruca, para os convidados enganarem os porteiros. Bem-feito!
 
Mas está na hora de parar com isso. Está bem que ninguém espera que alguém de bermuda e camiseta vá assim a estas sessões. Mas um blazer, um vestido alinhado e sapatilhas, sim, por que não? O maior glamour, afinal, deve estar na tela. Não fora dela.

Woody Allen, mais relax aos quase 80 anos

 Cannes - Mais uma vez, Woody Allen voltou a Cannes. E, considerando a primeira vez que o entrevistei por aqui, há exatos 13 anos (quando ele trouxe Dirigindo no Escuro), melhorou sua adequação de figurino ao clima. Naquela altura, o entrevistei no terraço de um dos grandes hotéis daqui, o Carlton, sob um céu muito azul de primavera, vestindo um paletó de tweed pesadão, totalmente impróprio para o clima.
 
Hoje, outro dia com clima igual por aqui – embora com considerável ventinho -, ele apareceu na coletiva de imprensa de seu novo filme, O Homem Irracional, vestindo uma informal e leve camisa xadrez azul escura. Parece que pouco antes de completar 80 anos (em dezembro), ele está ficando mais relaxado, até no figurino.
 
Ele enfrentou a coletiva, por exemplo, mais à vontade que da última vez (ele é um habituê, vem quase todo ano). Pareceu conectado e riu de perguntas irreverentes, como se já tinha pensado em matar alguma de suas mulheres (tema que tem a ver com o filme atual). Ele riu e respondeu: “Acabei de pensar agora!”. Não perdeu a piada, como nos bons velhos tempos de stand up comedy.
 
O que não falta, infelizmente, por parte de alguns jornalistas brasileiros, é a clássica perguntinha: “Quando o sr. vai filmar no Brasil? Por que não filma no Rio de Janeiro?”. E, com infinita paciência, Woody respondeu que “não saberia por onde começar” para filmar algo no Brasil, onde ele nunca esteve. Ele fica à vontade de filmar em Nova York ou Paris, que ele conhece bem. Cinema, para ele, é uma sonata, não uma sinfonia. Ele faz o jogo do tamanho que sabe e pode e ainda se diverte. Enquanto ainda divertir os outros também, está tudo certo, os dois lados saem ganhando.