07/12/2023

Ruído Branco, de Noah Baumbach

Quando uma personagem pergunta a outra em Ruído Branco qual é o seu problema de saúde, a resposta poderia ser “pós-modernidade”. Mas Noah Baumbach, obviamente, mantém o diálogo original do livro de Don DeLillo e diz que é um medo incontrolável de morrer. Não ajuda muito o fato de que, uma hora antes, o protagonista, Jack (Adam Driver), um especialista em Estudos de Hitler (o maior e único, na verdade, nos EUA), tenha dito aos alunos que “todas as tramas caminham em direção à morte”.
 
Mantendo-se bem próximo do original – para o bem e para o mal –, Baumbach é reverente ao grande DeLillo, mas capta bem a atmosfera dos anos de 1980 nos EUA – em especial pela excelente fotografia de Lol Crawley e o cabelo da personagem de Greta Gerwig, que grita “it is the 80s” em cada ondulação dele. Essa talvez seja a grande qualidade do filme, conseguir reproduzir o espírito de uma época em imagens. E, nesse sentido, o diretor revisita vários gêneros e tropos daquela década – dos terrores do passado às comédias de família.
 
Mas, ao mesmo tempo, parece que o filme é reverente demais ao original – dividindo-se em três parte, como o romance. Falta a Baumbach apropriar-se do romance, torná-lo seu e não apenas o ilustrar com imagens. Os males espiritual, emocional, físico, político e econômico estão todos ali, materializados no medo exacerbado que protagonista feminina tem de morrer. As características do zeitgeist daquele período também, como a ausência da historicização da narrativa. Tudo parece acontecer ao mesmo tempo: a narrativa é propositadamente (espera-se) confusa em sua primeira parte; a ausência de elos emocionais e (estruturalmente) narrativos; e o consumismo tornando-se espetáculo social (especialmente nos créditos finais).
 
De qualquer forma, o “airborne toxic event”, o “acontecimento tóxico aéreo”, tem uma semelhança impressionante e assustadora com o presente nosso – da falta de informações às informações contraditórias, passando pelo negacionismo. E, em certo sentido, todas as tentativas de adaptação fracassadas do filme foram para o bem, pois ele não teria tanta ressonância como agora – ainda que pelas mãos de Baumbach, que, sendo honesto, se esforçou e entrega um filme decente. A melhor coisa é a música inédita do LCD Soundsystem, new body rhumba, que toca nos créditos finais.

Taiguara, por Carlos Alberto Mattos

Cinéfilos e cinéfilas mais jovens devem conhecer o cantor e compositor Taiguara pela música de abertura de Aquarius, mas como bem mostra o documentário Taiguara – Onde Andará teu Sabiá?, do jornalista e crítico Carlos Alberto Mattos, o artista, é obviamente, muito mais do que isso. Composto a partir de imagens e entrevistas na internet, o filme é um amplo painel da trajetória do cantor nascido no Uruguai e radicado no Brasil.
 
Esse é claramente um filme de montagem, de construção de uma narrativa guiada pelo material disponível, conduzida por falas do próprio Taiguara. Nesse sentido, vida e obra são o foco do documentário, que, ao rever uma carreira que durou de 1964 a 1996, quando ele morreu, fala também de um período da história do Brasil. A ênfase está nos anos de ditadura e de como ele foi um dos artistas mais censurados na época.
 
A montagem, também assinada pelo diretor, é sagaz o bastante no sentido de ordenar fatos, iluminar questões, a ponto de superar a variedade de qualidade dos materiais da internet. É impressionante que um artista do quilate de Taiguara não tivesse um documentário resgatando e registrando sua obra. Agora tem! O filme está disponível gratuitamente no Vimeo: https://vimeo.com/726331864
 
 

Um gosto de mel, de Tony Richardson

A Taste of Honey – Um gosto de mel – é, possivelmente, o filme mais celebrado da British New Wave. Dirigido por Tony Richardson, a partir a peça de Shelagh Delaney, que assina o roteiro com o cineasta. A protagonista é interpretada por Rita Tushingham, premiada em Cannes, por esse trabalho, assim como Murray Melvin, que ganhou prêmio de ator.  Por tocar em temas espinhosos, como maternidade solo, homossexualidade, relacionamentos interraciais, o filme foi banido em vários países.
 
Tushingham interpreta Jo, uma jovem que vive numa cidade decadente onde as indústrias estão indo embora. Como praticamente todos os filmes do movimento, aqui, o cenário pós-industrial é central na compreensão da personagem e sua trajetória. É uma juventude sem perspectivas, numa sociedade que se afunda. E fica ainda mais complicado para Jo por ser mulher.
 
Ela tem 17 anos, e fica grávida de um marinheiro negro, que acaba partindo. A mãe dela está mais interessada em se casar do que ajudar a filha – a mãe é outra personagem excelente, interpretada por Dora Bryan. Jo passa por uma espécie de calvário que se transforma quando conhece Geoffrey Ingham (Melvin), jovem gay estudante de moda, com quem vai viver, e aceitará assumir a criança.
 
As vidas que Richardson retrata aqui são tristes e marcadas pela opressão e falta de opções. Ainda assim, os personagens e o diretor encontram algum lirismo em meio ao caos e a tristeza. O filme tem cenas memoráveis e as interpretações de todo o elenco são marcantes.
 
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British New Wave: Aconteceu num sábado, de Karel Reisz

Saturday Night Sunday Morning – Aconteceu num sábado –, de Karel Reisz, é um daqueles momentos em que o movimento estava chegando ao seu topo. É um dos melhores filmes da BNW, e de um humanismo excepcional. A temática dos jovens homens ingleses da classe operária com ódio do mundo parecia estar a ponto de virar uma fórmula, mas partindo do romance de Alan Sillitoe, que também assina o roteiro, a narrativa traz uma alta carga emocional para o personagem, e, consequentemente, o filme.
 
Albert Finney é o jovem operário numa fábrica em Nottingham, que se recusa a viver essa vidinha para sempre, e ambiciona mais. As pessoas daquele lugar, até mesmo seus pais, para ele, estão mortas por dentro. Enquanto espera poder sair dali, se envolve com Brenda, a esposa de um colega de trabalho, e namora Doreen, que sonha em se casar virgem.
 
Finney está excepcional como o protagonista. Sua personagem é repleta de nuances, contradições e complexidade – enfim, muito humano. Primeiro longa de ficção do documentarista tcheco Reisz, SNSM carrega em sua narrativa alguns tons de documentário, uma câmera que observa, sem ser intrusiva, e um olhar crítico sobre as dinâmicas de classe inglesas da época.
 
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British New Wave: Ainda resta uma esperança, de John Schlesinger

Acho que A Kind of Loving – Ainda resta uma esperança –, de 1962, é o filme da British New Wave que mais se aproxima do documental. Embora não exista um distanciamento das técnicas narrativas da ficção a ponto de emular o documentário, há no longa de John Schlesinger uma câmera observadora, e que coloca ao centro um jovem projetista numa fábrica que se envolve com uma secretaria, e vive uma relação tumultuada com ela. O filme ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim.

Eles acabam se casando, quando a moça fica gravida, e moram na casa da mãe da jovem, uma mulher dominadora que não gosta do genro. A relação fica cada vez mais fraturada. Os personagens jovens e inexperientes são uma marca aqui, em contradição com a geração de seus pais e mães completamente desiludidos com a vida e a sociedade.

O primeiro filme de Schlesinger mostra elementos que ele iria amadurecer em sua obra – em especial em Billy Liar, no ano seguinte. O retrato da juventude em busca de sua identidade num mundo à beira da transformação é o que há de mais marcante aqui, nas interpretações inspiradas de Alan Bates e June Ritchie, nos papéis principais.  
 
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British New Wave: Vida de Solteiro, de Tony Richardson

Chego agora ao THE ENTERTAINER – também conhecido como O Anfitrião e Vida de Solteiro, dois títulos que não fazem o menor sentido –, dirigido por Tony Richardson, com roteiro de John Osborne e Nigel Kneale baseado na peça homônima do próprio Osborne.
 
Ao contrário do filme anterior, Look back in anger, também baseado em peça de Osborne, aqui Richardson se livra de algumas amarras teatrais que pareciam impedir sua direção de se expandir no espaço. Laurence Olivier já havia feito o papel-título no palco, e aqui o recria de maneira melancólica e vibrante, um personagem cuja carreira vai ladeira a baixo, tendo como plateia alguns gatos pingados.
 
Jean (Joan Plowright) é sua filha que mora em Londres, e vem visitar a família na cidade costeira onde moram o pai, a madrasta, o avô e o irmão. Todos uma família ligada ao entretenimento. É pelos olhos dela que a imagem de artista do pai nos é descontruída. A personagem serve tanto como catalisadora da narrativa, quando como nossa mediadora.
 
A princípio, o filme me pareceu um tanto diferente dos outros exemplares do movimento, mas, creio que sua historicidade, e a visão que tem da vida inglesa do pós-II Guerra são elementos mais fortes que o colocam entre os representantes da British New Wave. Um dos filhos do protagonistas é um soldado que vai para a guerra, e acaba capturado pelos egípcios no Canal de Suez, e o pai fica sabendo disso por uma notícia de rádio. O pessimismo e a desilusão do momento histórico estão cristalizados na trajetória do protagonista.
 
Em DVD Versátil Box Nouvelle Vague Britânica

British New Wave: Odeio essa mulher, de Tony Richardson

LOOK BACK IN ANGER – aqui ganhou o título de Odeio essa mulher (!?!?) – é talvez um dos mais expressivos da British New Wave. Dirigido por Tony Richardson, a partir da peça homônima de John Osborne – que assina o roteiro com Nigel Kneale – traz uma das minhas interpretações favoritas da história do cinema, Richard Burton como Jimmy Poter, aspirante a músico de jazz, que vende doces na feira.
 
Porter é um personagem que, como diríamos hoje, está com sangue nos olhos o tempo todo. Com ódio de sua mulher, da senhoria, da feira, dos doces, da sociedade, do sistema. Mas ele não se revolta, e teria como? Vivendo uma vida de classe operária, ele afoga as mágoas bebendo. Há quem reclame da escolha de Burton para o personagem – que já era um ator famoso, e estabelecido – mas acho-o impressionante, em especial suas cenas com Claire Bloom, que faz uma amiga de sua mulher, a quem ele odeia no começo, mas os dois acabam se envolvendo depois.
 
Look Back in anger talvez seja uma filme que envelheceu mal, afinal, o que Richardson fez depois é muito mais relevante e forte – como Um gosto de mel – mas, de qualquer forma, esse filme marca o início da tentativa do diretor em retratar uma juventude pobre e oprimida numa sociedade conservadora. É um filme claustrofóbico em seu cenário, mas, acima de tudo, no horizonte que aponta para seus personagens.
 
Em DVD MGM

British New Wave: Almas em Leilão, Jack Clayton

Começo a rever os filmes da British New Wave seguindo as indicações de B. F. Taylor no livro dele sobre o assunto – e, segundo ele, são apenas nove os longas do movimento, embora algumas outras listas incluam mais alguns. O primeiro é ROOM AT THE TOP (no Brasil: Almas em Leilão). Começa aqui, no filme de 1959, uma mudança no cinema inglês, trazendo ao centro personagens da classe operária, e o retrato de suas vindas em condições precárias que, não poucas vezes, se materializam num tormento emocional nos filmes.

Aqui, o protagonista é um funcionário burocrata da prefeitura que no pós-II Guerra se muda para uma pequena cidade urbana onde começa sua carreira, mas também é ambicioso, e procura um room at the top – ou seja, escalar a escada da sociedade e ficar rico.

Ele se apaixona por uma jovem bela e de família rica – as duas coisas são ótimas para ele – mas ela tem um namorado tão rico quanto ela. Ao mesmo tempo, se envolve com uma mulher mais velha e também rica, interpretada por Simone Signoret, que ganhou prêmio em Cannes, o Oscar etc. E ela está realmente incrível como essa figura trágica vivendo um casamento infeliz e com um marido abusador, que se apaixona loucamente pelo rapaz mais jovem – apenas 10 anos, mas, na época, isso fazia muita diferença.

Dirigido por Jack Clayton, Room at the top se beneficiou do abalo que transformou a cultura inglesa do momento do pós-Guerra. É, claramente, um filme sobre disputa de classe, com o protagonista em óbvia desvantagem por ser pobre. É também um filme sobre a devastação da guerra não superada em pequenas cidades industriais – como é o caso da cidade natal do personagem, que a visita uma vez, e vê sua antiga casa ainda em ruínas mas habitada por uma família desconhecida.

Em DVD pela Colecione Clássicos

O poder do cão na Netflix

Depois de discreta passagem pelos cinemas, já está disponível na Nefflix Ataque dos Cães, escrito e dirigido por Jane Campion, ganhadora do prêmio de direção em Veneza deste ano. O filme transita sempre entre dois polos: o amor e a vingança; a doçura e a violência; o certo e o incerto. Partindo de um romance dos anos de 1960, de Thomas Savage, ela constrói uma narrativa que desafia a clássica do western, embora mantendo alguns de seus elementos, o filme claramente os subverte: da presença feminina à sexualidade masculina.
 
É um filme que mantém rimas visuais e temáticas com Brokeback Mountain, mas, na forma, o desenvolvimento é diferente. Campion sempre tem um olhar particular para a natureza, essa é uma força que entra na vida das personagens – é só pensar no mar em O Piano, ou no campo florido de Brilho de uma Paixão. A natureza aqui é mais do que uma paisagem ou um elemento estético que serve como base para belas imagens. É uma força que segura as personagens em seu estado mais bruto – quase como um imã, impedem que vão além do que já são.
 
O título original – Power of the Dog – vem de um salmo bíblico: “Livra a minha alma da espada e a minha predileta, da força do cão.” Quem é a (ou o) predileta (o), e quem é o cão, jamais fica claro entre as personagens, pois tudo se dá no terreno da ambiguidade. A figura feminina mais forte aqui é Rose (Kirsten Dunst), viúva e mãe de um adolescente aparentemente frágil física e emocionalmente, Peter (Kodi Smit-McPhee), que gosta de fazer flores de papel. Ela se casa com  George (Jesse Plemons), e vai viver na fazenda dele e do irmão, Phil (Benedict Cumberbatch), um sujeito que, apesar de formado em Yale, optou por cuidar do gado como um peão.
Rose funciona mais como um catalizador que desestabiliza relações do que uma personagem. O centro são os homens e uma espécie de investigação da masculinidade. Se o cowboy é o símbolo máximo do homem americano, construído historicamente a partir da expansão territorial do país, Ataque dos Cães (um título um tanto infeliz que a Netflix arrumou por aqui) humaniza esse mito sem o desconstruir, mas trazendo-lhe uma bem-vinda humanidade que o torna mais complexo