O pícaro de sapatenis no novo romance de Reinaldo Moraes
Cássio Adalberto – aka Kabeto – é um escritor em busca de uma primeira frase para seu segundo romance. O livro de estreia lançado muito tempo atrás fez sucesso, mas ele parou por aí. Deitou-se sobre os louros da fama, até que essa passou, o dinheiro acabou, e agora vive de frilas na editora de uma amiga e (eventual) amante. Maior que o mundo – Volume 1 acompanha um final de semana na vida desse sujeito em junho de 2013, quando, debaixo de muito frio, pessoas manifestavam em São Paulo contra o aumento de R$0,20 do transporte público.
Reinaldo Moraes conta, na orelha do livro, que o romance é o primeiro de uma possível trilogia, e nasceu de um roteiro que escreveu para um jovem diretor – o filme já foi rodado e está, nesse momento em pós-produção. Mas, como aponta o autor, são obras relativamente distintas. “Pela primeira vez na história das adaptações literárias pro cinema, é o livro que trai o filme, e não o contrário.”
MQOM é um romance picaresco e seu cenário é a cidade de São Paulo – em especial o Baixo Augusta, mas a região de Pinheiro é que domina a primeira parte, na qual Kabeto desce a pé a Teodoro Sampaio rumo ao escritório da amiga. Com um antigo gravador em punho, comenta o que vê – lojas, pessoas e afins. Espera que ali encontre a primeira frase para o novo romance que vai romper seu bloqueio criativo. Desde esse gravador até o celular antigo (o “burrofone”, como ele chama) vemos que mais do que uma pessoa peculiar, Kabeto é um sujeito antiquado. Sua resistência à inovação que poderia ser uma espécie de charme, é um índice, no entanto, de sua incapacidade de se adaptar aos novos tempos.
Kabeto é fruto dos anos de 1980, quando entrou na vida adulta, e chegou ao século XXI como um típico tiozão dos trocadilhos horríveis que ele crer ser engraçados, como: “Menos vícios e mais Vinicius. Ó, Vinicius, por que demorais?”. Ele, enquanto personagem, não se deve ser levado a sério, e a prova disso é que usa sapatenis, o que conta com orgulho. Kabeto é um sujeito antiquado no pior sentido da palavra – é claramente machista e homofóbico, e ele tem consciência disso (às se sente até culpado), mas finge que é humor. Ele é a pessoa cujo mundo está, aos poucos, deixando de existir como ele conhece. E, nesse sentido, Morais é sagaz em captar esse movimento do presente, e expor essa figura que surge aqui como um pícaro andarilho por São Paulo.
De Pinheiros ele vai a pé, no final da tarde de sexta, para seu bar favorito, no Baixo Augusta, passando pela Paulista onde acontece uma manifestação. Ele sabe disso, mas não dá muita bola. Kabeto é um sujeito levemente alienado. No bar, entram em cena alguns dos melhores personagens do romance: Park, um jovem poeta coreano (cujos poemas ficam trancados no antigo guarda-roupa de sua avó), e Mina, a grande figura feminina do romance, repleto de mulheres que se limitam a ser uma genitália para Kabeto. Ela é a única mulher com personalidade forte e livre. Mantém um caso com o protagonista, mas é algo esporádico (aqui, certamente, ele faria um trocadilho infame com essa palavra) – dependendo mais da vontade dela do que dele.
MQOM não é um romance muito fácil porque seu protagonista-narrador é um sujeito chato, beirando o insuportável em sua arrogância de tiozão anacrônico disfarçada de humor. Mas por que ainda somos compelidos a ler suas quase 500 páginas? Porque Morais é um tremendo escritor. Ele capta o nosso presente com nuance e percepção. Situar a narrativa em junho de 2013 é coloca-la no momento histórico que foi o ponto de partida do que vivemos hoje. Kabeto é a parcela informada mas alienada da nação, que está mais interessada em sexo, cerveja e droga no momento em que a cidade (e depois o país) está ruindo. Alguém chega a comentar algo parecido no livro. Talvez por isso mesmo, o bloqueio criativo do protagonista é mais um indício de sua incapacidade de lidar com o presente do que qualquer outra coisa.