Cada um infeliz à sua maneira: Relendo Anna Kariênina
Na introdução da edição de Anna Kariênina publicada pela Cosac em 2005 (e relançada pela Cia das Letras), o tradutor Rubens Figueiredo explica que, na fase dos rascunhos, Tolstói queria chamar o romance de Dois casais ou Dois casamentos, e, num primeiro momento, faz todo sentido: a narrativa é, a grosso modo, sobre os casais Anna Kariênina e Vrónski, e Liévin e Kitty. Mas muito antes de se chegar ao meio da trama é fácil entender porque o livro ganhou esse título definitivo.
Anna é o centro organizador de tudo. Por mais sutil que seja em alguns momentos – embora em boa parte deles seja bem escancarado – a vida das personagens tomam rumos resultantes das ações e escolhas da protagonista. O envolvimento de Anna e Vrónski, no princípio, por exemplo, causa uma desilusão amorosa em Kitty, que precisa rever sua decisão de esnobar o pedido de casamento Liévin – e isso é só o começo da narrativa que desencadeia uma série de acontecimentos. O amor aqui, aliás, está longe de qualquer romantização sentimentaloide (ou até sentimentalista, talvez). As relações amorosas são, ao fim do dia, relações sociais nas quais sentimentos nobres, às vezes, nem têm um papel tão preponderante.
Anna Kariênina talvez não seja muito diferente de uma novela das oito. É uma telenovela, mas com mais elaboração formal e profundidade nos personagens, mas sua trama, seus encontros e desencontros, reviravoltas e afins vão ao fundo de nossas expectativas mais primárias daquilo que esperamos de uma ficção – seja Tolstói, Machado, “Julia” ou Gilberto Braga. O que talvez assuste seja o seu tamanho, suas quase mil páginas.
Não é um livro difícil de se ler – é um romance ao modo da literatura realista do século XIX. Sua trama progride com segurança, não há longas digressões versando sobre a vida, a existência, Deus e o mundo. Nada disso. Tolstói segue seu grande elenco de personagens – a lista ao final da edição da Cosac ajuda porque eles são, ao longo da história, chamados por diversos nomes – dando-lhes vida, expectativas e fazendo deles figuras de uma alta sociedade infeliz em suas obsessões sociais.
É uma aventura – que se equipara possivelmente apenas a ler Guerra e Paz – de investigação social. Uma aventura sobre um momento da história de um mundo que estava prestes a ruir. Anna Kariênina foi publicado originalmente em forma de folhetim entre 1875 e 1877 – menos de meio século depois, a Revolução Russa chacoalharia a sociedade de Karenin e dos seus. Há muitas discussões sobre a questão social no romance – especialmente da parte de Liévin e sua relação com os mujiques. Os debates são sobre uma sociedade à beira de uma explosão (muito embora, a maioria das personagens não se dê conta disso) – as coisas precisavam mudar para (talvez) continuar as mesmas.