22/03/2025

British New Wave: Almas em Leilão, Jack Clayton

Começo a rever os filmes da British New Wave seguindo as indicações de B. F. Taylor no livro dele sobre o assunto – e, segundo ele, são apenas nove os longas do movimento, embora algumas outras listas incluam mais alguns. O primeiro é ROOM AT THE TOP (no Brasil: Almas em Leilão). Começa aqui, no filme de 1959, uma mudança no cinema inglês, trazendo ao centro personagens da classe operária, e o retrato de suas vindas em condições precárias que, não poucas vezes, se materializam num tormento emocional nos filmes.

Aqui, o protagonista é um funcionário burocrata da prefeitura que no pós-II Guerra se muda para uma pequena cidade urbana onde começa sua carreira, mas também é ambicioso, e procura um room at the top – ou seja, escalar a escada da sociedade e ficar rico.

Ele se apaixona por uma jovem bela e de família rica – as duas coisas são ótimas para ele – mas ela tem um namorado tão rico quanto ela. Ao mesmo tempo, se envolve com uma mulher mais velha e também rica, interpretada por Simone Signoret, que ganhou prêmio em Cannes, o Oscar etc. E ela está realmente incrível como essa figura trágica vivendo um casamento infeliz e com um marido abusador, que se apaixona loucamente pelo rapaz mais jovem – apenas 10 anos, mas, na época, isso fazia muita diferença.

Dirigido por Jack Clayton, Room at the top se beneficiou do abalo que transformou a cultura inglesa do momento do pós-Guerra. É, claramente, um filme sobre disputa de classe, com o protagonista em óbvia desvantagem por ser pobre. É também um filme sobre a devastação da guerra não superada em pequenas cidades industriais – como é o caso da cidade natal do personagem, que a visita uma vez, e vê sua antiga casa ainda em ruínas mas habitada por uma família desconhecida.

Em DVD pela Colecione Clássicos

O poder do cão na Netflix

Depois de discreta passagem pelos cinemas, já está disponível na Nefflix Ataque dos Cães, escrito e dirigido por Jane Campion, ganhadora do prêmio de direção em Veneza deste ano. O filme transita sempre entre dois polos: o amor e a vingança; a doçura e a violência; o certo e o incerto. Partindo de um romance dos anos de 1960, de Thomas Savage, ela constrói uma narrativa que desafia a clássica do western, embora mantendo alguns de seus elementos, o filme claramente os subverte: da presença feminina à sexualidade masculina.
 
É um filme que mantém rimas visuais e temáticas com Brokeback Mountain, mas, na forma, o desenvolvimento é diferente. Campion sempre tem um olhar particular para a natureza, essa é uma força que entra na vida das personagens – é só pensar no mar em O Piano, ou no campo florido de Brilho de uma Paixão. A natureza aqui é mais do que uma paisagem ou um elemento estético que serve como base para belas imagens. É uma força que segura as personagens em seu estado mais bruto – quase como um imã, impedem que vão além do que já são.
 
O título original – Power of the Dog – vem de um salmo bíblico: “Livra a minha alma da espada e a minha predileta, da força do cão.” Quem é a (ou o) predileta (o), e quem é o cão, jamais fica claro entre as personagens, pois tudo se dá no terreno da ambiguidade. A figura feminina mais forte aqui é Rose (Kirsten Dunst), viúva e mãe de um adolescente aparentemente frágil física e emocionalmente, Peter (Kodi Smit-McPhee), que gosta de fazer flores de papel. Ela se casa com  George (Jesse Plemons), e vai viver na fazenda dele e do irmão, Phil (Benedict Cumberbatch), um sujeito que, apesar de formado em Yale, optou por cuidar do gado como um peão.
Rose funciona mais como um catalizador que desestabiliza relações do que uma personagem. O centro são os homens e uma espécie de investigação da masculinidade. Se o cowboy é o símbolo máximo do homem americano, construído historicamente a partir da expansão territorial do país, Ataque dos Cães (um título um tanto infeliz que a Netflix arrumou por aqui) humaniza esse mito sem o desconstruir, mas trazendo-lhe uma bem-vinda humanidade que o torna mais complexo

Sally Rooney sendo ela mesma - para o bem e para o mal

Acho curioso como os títulos dos três romances de Sally Rooney são intercambiáveis. Qualquer um deles poderia se chamar Conversa com amigos, Pessoas normais ou Belo mundo, onde está você? São habitados por personagens que vivem num mesmo universo, em faixas etárias parecidas e com questões existencialistas ou materialistas em sintonia.
 
Aqui, Rooney, novamente, mostra seu controle impressionante da prosa e dos diálogos, assim como sua capacidade de criar personagens. As protagonistas são Alice e Eileen, amigas desde a faculdade que hoje vivem a vida de adultas, como escritora e editora numa revista literária respectivamente. O romance acompanha suas vidas de maneira bem próxima, às vezes, com uma narração que beira o tom documental. Mas elas mais se revelam quando trocam e-mails. São os melhores capítulos do livro.
 
Com mais de 350 páginas, o livro soa um tanto excessivo, um trabalho de edição mais apurado daria mais força ao material, que, em momentos, parece girar em falso. Rooney é uma autora interessada no romance enquanto forma, e aqui, ela deixa isso bem claro. As duas protagonistas parecem como dois lados dela mesma discutindo sobre o papel da literatura num mundo cada vez mais problemático e degradado. Não tem nada a ver com uma visão da arte como algo superior, pelo contrário, parece mesmo mais um sentimento de culpa dela. De qualquer forma, embora aqui, ela não atinja o mesmo nível de Pessoas Normais, as últimas 30 páginas de Belo mundo são genuinamente emocionantes.

Um retrato de opressão e liberdade no romance "O Baile das Loucas"

O livro de estreia da francesa Victoria Mas é um romance histórico gótico que combina feminismo e espiritismo numa Paris do século XIX. La Salpêtrière funciona como um manicômio exclusivo para mulheres – essas pacientes são chamadas pelos médicos e enfermeiras de “alienadas”. Conforme se percebe, a maioria são vítimas de abusos físicos e mentais, e internadas pelas famílias que querem se livrar delas. Todo ano, no meio da quaresma, há um baile das pacientes, do qual a alta sociedade parisiense participa como espectadora.
 
A narrativa se passa a poucos dias desse evento, com a chegada de uma nova moça, Eugénie, uma médium de família burguesa, que está descobrindo o seu dom – após ler O Livro dos Espíritos, começa a compreender o que está acontecendo consigo, mas o pai a interna. A outra personagem central é Geneviève, uma enfermeira veterana e linha-dura que tem uma grande tristeza pois perdeu a irmã pequena, que irá se comunicar com ela graças à nova paciente.
 
Mas escreve um romance histórico com figuras reais (Jean-Martin Charcot) e fictícias, mas seu interesse central é no gaslighting e silenciamento das mulheres tachadas como loucas – uma saída bem mais fácil, para a sociedade, do que confrontar e prender os abusadores ou lidar com os gatilhos emocionais que elas enfrentam. O hospício é, dialeticamente, o espaço de confinamento, mas também de liberdade, onde podem ser quem quiserem. A prosa é cinematográfica e rica em detalhes, não à toa foi transformada em filme por Mélanie Laurent.

A Permaescrita de Carola Saavedra

Sempre fui fã de Carola Saavedra, desde a 1a vez que li um romance dela, em 2007. Quatro livros e 14 anos depois, deparo-me com sua primeira obra de “ensaios” (explico essas aspas depois), que servem como uma espécie de conversa entre ela suas leitoras/es. Em O Mundo Desdobrável estão questionamentos sobre o mundo do presente, a escrita, a literatura, a família, a arte e a sociedade.
 
A narração aqui – pois até nos ensaios há isso – é questionadora sempre. É um livro sem conformismos, que, ao mesmo tempo, causa desconforto, mas também acalenta. O primeiro texto, “A escrita do fim do mundo”, me interessa particularmente, por ser meu tema de pesquisa. Todos os demais, porém, de uma maneira ou outra, tocam nessa questão. Seria possível pensar o presente, sem abordar o apocalipse?
 
E disso vem: como escrever sobre isso? Em um dos textos, a autora sugere a Permaescrita, inspirada na Permacultura, que seria algo como uma escrita livre, sem contenções de gênero, forma, tema etc. E, aos poucos, percebemos que é exatamente isso que ela faz nessa coletânea – que traz a palavra “ensaios” no título, mas é uma combinação-livre num fluxo criativo que transita entre ficção, documental, poesia, memórias, história.
 
Mais do que tentar figurar o que estamos passando, Saavedra busca uma forma literária do presente. Um único gênero, uma única forma de narrar é incapaz de lidar com o nosso tempo. Talvez nada o seja capaz, mas os textos aqui jogam uma luz, de maneira poética e direta, sobre o aqui e agora. De cinema (Chantal Akerman é uma bela presença aqui) e literatura (Ursula K. LeGuin, também) à questão indígena (tema ligado à pesquisa da autora) nada é alheio a essa escrita.
 
Termino o livro com a sensação de um longo diálogo e muitas questões e certas iluminações sobre o mundo em que vivemos, e a ansiedade de saber o que vem aí. Como essa coletânea irá influenciar os próximos romances da autora. É uma dúvida que espero ser sanada um dia.  

Torto Arado: Um romance sobre consciência de classe

Premiado em Portugal (Leya) e no Brasil (Jabuti), Torto Arado é um raro romance unânime. Até agora, não vi ninguém falando mal – o que não quer dizer que não haja, mas é raro –, e todo mundo não só gosta, como também gosta muito. E não é exagero, o livro de Itamar Vieira Junior tem potencial de causar comoção pela sua combinação eficiente de erudito com o popular de maneira orgânica. Na forma, é sofisticado com sua polifonia narrativa, sua dimensão quase mítica e suas camadas de fantasia aliadas a um duro realismo da vida difícil na roça. Junto a isso, o escritor coloca uma trama de apelo direto – “fácil” talvez fosse uma palavra indicada aqui, mas carregaria num tom que não é preciso aqui.
 
As protagonistas são duas irmã, Bibiana e Belonísia, cujas vidas são unidas definitivamente por um acidente – na verdade, está mais para um ritual – na primeira cena do romance. O desenlace trágico de uma brincadeira infantil marca a sangue as primeiras páginas de uma narrativa tingida por vermelho o tempo todo. Há um realismo mágico discreto aqui, não existem “poderes” sobrenaturais, mas uma maneira de encarar a narrativa que transita entre o real e a fantasia de maneira sutil.
 
Dividido em três partes, Torto Arado dá voz ao par de irmãs, e, às vezes, um discreto narrador em 3a pessoa, que contam sua história e de sua família, trabalhando de sol-a-sol numa terra que não é deles. Assim, ao centro, está, no fundo, o despertar de uma consciência de classe:
 
“Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai [...] por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre”, conta uma das narradoras. “Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos nosso pão. Se dali retirávamos nosso sustento.”
 
Esse trecho está na reta final do livro, o que indica, então, a longa travessia rumo à percepção da exploração que, como é dito também em outra ocasião, perdura por séculos. É interessante notar também que é o irmão caçula quem faz essas perguntas, o que indica, novamente, um longo caminho de várias gerações até que o problema possa, finalmente, ser formulado. A elas, o pai responde: “O documento da terra não via lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida em nossa mesa.”
 
Torto Arado lida com o clássico impasse entre gerações dentro de uma narrativa, mas Vieira Junior o faz de maneira sutil, trazendo à narrativa mais camadas de compreensão. O momento histórico entra de maneira discreta, aqui e ali, uma menção ou outra, mas fica claro de quando ele está falando. Essa ausência materializa a presença da exploração perene, da história de um povo para quem seu destino parece ser sempre o mesmo desde sempre.
 
Há, no entanto, um elemento utópico aqui, uma espécie de “suborno” que dá uma nota de esperança ao romance. A primeira manifestação clara é quando o povo se une para derrubar o portão de um cemitério onde não podia mais enterrar os seus. Mais tarde, é a percepção de que apenas o coletivo poderá trazer alguma mudança. O despertar da consciência de classe é um despertar coletivo, a percepção de sozinho ou sozinha não será capaz de trazer uma grande mudança. 

Indie 2020 - Todos os barcos no oceano

Bem interessante Todos os barcos no oceano, exibido agora à tarde no INDIE FESTIVAL, como parte da retrospectiva do diretor Dan Sallitt. Formalmente rigoroso, o média (?) olha para questões religiosas com sinceridade, a partir de duas irmãs: Evelyn, uma professora católica de teologia, e Virginia, que reaparece na vida dela depois de muito tempo. Ela entrara para um culto religioso, e, mais tarde, foi encontrada deprimida num banco de um parque. Cada uma tem uma visão de mundo, e da religião. Juntas, numa viagem, conversam sobre o assunto, e o passado em comum. Tudo isso é contado por Evelyn a um padre, amigo seu.
 
O filme me lembrou aquela tradição independente americana dos anos 1990, que hoje se tornou tipo uma marca facilmente identificável e previsível - embora alguns dos melhores filmes americanos de hoje estejam entre os independentes. Apesar de ser de 2004, Todos os barcos... me lembra aquele indie mais raiz - com a vantagem de que não tem câmera tremida. É um filme sóbrio, bastante falado, e com uma discussão interessante, e ótimas interpretações da dupla de atrizes. 
 
Será exibido novamente, no site do festival, na quarta, 11, às 16h3

"Léxico Familiar", de Natalia Ginzburg, um romance sobre o fascismo

O que acontece na esfera doméstica enquanto regimes fascistas sobem ao poder? Nada de mais, a vida segue, por um tempo, praticamente na normalidade apenas com pequenos distúrbios eventuais. É assim que acompanhamos em Léxico Familiar, o cotidiano de um clã judeu de classe média de Palermo entre os anos de 1920 e 1950. Mas chega um momento que esse véu aparente da normalidade cai, e o que é exposto é a face mais assustadora da intolerância e violência – mas o mundo dentro de casa sobrevive, mesmo quando a casa é destruída por algum bombardeio.
 
A escritora italiana Natalia Ginzburg afirma que o livro deve “ser lido como um romance: ou seja, sem exigir dele nada a mais, ou a menos, do que um romance pode oferecer.” E no caso dela tem muito a oferecer, pois essa combinação de memória com alguma invenção é um retrato que ressoa muito em nosso presente. Mediada por fio da memória, a narrativa se constrói quase como um sonho real, mas fantasioso. “Escrevi apenas daquilo de que me lembrava. [...] Há [no livro] também muitas coisas que eu lembrava e deixei de escrever”, diz ela na abertura. Algumas coisas, como ela diz (especialmente coisas sobre ela mesma) preferiu deixar de fora
 
Ela constrói uma crônica familiar com carinho, observa seus personagens com generosidade: o pai, um professor universitário antifascista sempre mau humorado (para ele, todo mundo é burro, tudo é parvoíce), a mãe sempre alegre (na maior parte das vezes uma alegria gratuita), os irmãos cada um vivendo sua vida. O fascismo de Mussolini sempre espreitando pelas frestas da porta – uma menção aqui e ali, uma tentativa quase perene de fingir que nada de muito grave está acontecendo, até que é impossível não se preocupar com o destino de uma família judia.
 
Não é que sejam alienados, mas é que no mundo doméstico, no cotidiano do trabalho, das contas, das preocupações com a comida e a escola das crianças, a política é um detalhe que raramente está em primeiro plano. E é nesse sentido que Ginzburg faz um retrato tão certeiro (e, em certa medida, para nós, assustador) da ascensão de um regime totalitário: a grande parcela da população que está tentando apenas sobreviver, sem se dar conta que corre o risco de ser aniquilada num futuro não muito distante.
 
O pai, o anatomista Giuseppe “Beppino” Levi, emerge como a figura mais forte aqui, exerce sobre a narradora e, consequentemente o leitor, uma espécie de fascínio em sua figura gigantesca. Mas é também com os pequenos personagens que o livro se torna um grande painel de um mundo prestes a ruir. Seja nas amigas da mãe (que não gostava de mulheres da idade dela), na costureira que tem medo do pai, ou os amigos dele que são perseguidos por suas posições políticas, e precisam se esconder na casa da família.
 
Lendo Léxico Familiar hoje, é impossível não pensar em Elena Ferrante, que, com sua Tetralogia Napolitana, é uma espécie de herdeira de Ginzburg. Não que exista uma cópia ou emulação – nada disso, mas ambas estão interessadas nas crônicas das relações familiares e interpessoais tendo ao fundo, e como força motora, a narrativa da História.  

O discreto charme de “Eurídice Gusmão”

Na apresentação de seu romance A vida invisível de Eurídice Gusmão, a escritora Martha Batalha alerta: “Eurídice e Guida [as protagonistas] foram baseadas na vida das minhas, e das suas avós”. Ué, ela nos conhece para saber isso? Pois é, não nos conhece, mas conhece muito bem o que é ser mulher no Brasil, e por isso pode fazer tal afirmação com tanta propriedade – certas coisas não mudam, ou mudam pouco, ou mudam pouco e lentamente. O livro, publicado em 2016, é exatamente sobre isso: as permanências do que é ser mulher no Brasil.

Há um recorte claro de classe: média carioca, mas que, de certa forma, certos pontos, independem da classe (os comentários sobre a empregada Das Dores são pontuais, mas reveladores) ou da raça – talvez nem da nacionalidade. Por isso A vida invisível de Eurídice Gusmão é um livro que encontrou certo sucesso também fora do Brasil. Aqui, além de tudo, Karim Aïnouz (O céu de Suely) prepara um longa inspirado no romance.
 
Batalha escreve com leveza sobre um assunto espinhoso, o que não quer dizer que seu livro seja superficial. É um humor muito peculiar, e altamente irônico e não destituído de certo cinismo. Como bem se sabe: Rindo castigamos os costumes. Eurídice nos é apresentada como uma mulher brilhante. “Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes”, comenta o (ou a) narrador(a), cujos comentários tem um quê de Machado de Assis. Mas a personagem vive no Rio de Janeiro dos anos de 1950, e “o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem.” Depois disso se senta no sofá, e olha as unhas “pensando no que deveria pensar”. De certa forma, esse não deixa de ser um romance de formação, do despertar de uma jovem mulher sobre sua condição, e a tentativa de fugir dela – sempre silenciada, ou para combinar com o título, invisibilizada.
 
Eurídice tem um marido com quem se dá relativamente bem. Ele, como ela, não deixa estar ligado a um papel social, um momento histórico – não lhe resta muito a fazer. E o romance tem plena noção disso. Ele faz coisas horríveis – especialmente quando sua mulher está se encontrando na vida – mas não é um vilão: é um sujeito infeliz incapaz de perceber as engrenagens do mundo. Quem tenta fugir disso é Guida irmã mais velha de Eurídice, mas ela vive num lugar e num momento histórico que não lhe são generosos.
 
Há quem encontre em A vida invisível de Eurídice Gusmão algo de telenovela, e sua estrutura parece semelhante, com sua profusão de personagens e tramas paralelas, mas Batalha organiza isso tudo com tanta elegância e maestria, que o resultado está longe dos clichês surrados da televisão. A reconstituição histórica é complexa a ponto de tacitamente criar um paralelo entre o passado e o presente. O romance não precisa gritar “olha como certas coisas não mudam”, só nos mostra de maneira sagaz como os problemas persistem.