04/10/2024

Vamos grunhir no cinema?

Sempre que algum filme de ação ou uma adaptação de quadrinhos chega ao cinema, uma parte dos aficionados por esses dois gêneros fica irritada com os críticos que, ó céus, não conseguem ver qualidades nas obras. Alguns chegam a ofender o pobre do infeliz que perdeu duas horas de sua vida vendo uma profusão de cabeças sendo decepadas, de carros destruídos, de bombas arrasando edifícios. Como, insistem, vocês não gostaram? Normalmente o crítico é aconselhado a se inteirar mais do assunto, ler gibis e tratados esotéricos para poder falar com propriedade sobre o objeto em discussão.

Que Woody Allen que nada, bom mesmo é o diretor  (quem, mesmo?) que dirigiu "Conan". Esqueçam Fellini, ignorem Clint Eastwood, cuspam em John Ford. Almodóvar? Kubrick? Joguem tudo no lixo, peguem um saco gigante de pipocas e se deliciem com o estilo do ator (quem, mesmo?) que interpreta Conan. Reparem em sua expressão facial, em seu gestual, prestem atenção em sua dicção. Ah, ele não fala, só grunhe? Melhor ainda, afinal naquela época as pessoas grunhiam mais do que falavam.

Esqueçam direção de atores, fotografia, roteiro, trilha musical. Nem se preocupem em aprender alguma coisa, em conhecer experiências de vida por meio dos personagens. Claro que a vida daquelas pessoas não tem nada a ver com a sua, a não ser que você também seja um decepador de cabeças (o que hoje em dia é ilegal e dá cadeia). Mas por que você iria querer ver nas telas algo parecido com sua vida? O bom mesmo é dirigir em alta velocidade, explodir umas bombas, despachar uns terroristas para o inferno, degustando um bom saco gigante de pipocas.

Sabe aquele curso de inglês que você queria fazer? Esqueça, agora a moda é grunhir.

Woody mania é a nova moda paulistana

Meia-noite em Paris virou mania em São Paulo e foi visto por pessoas que amam Woody Allen, pesssoas que o odeiam e pessoas que não sabem de quem se trata, mas ouviram falar que o filme é maravilhoso e "precisa" ser visto. Até quem foi ver outro filme e se arrependeu da escolha acaba dando a mão à palmatória: "Por que não fui ver o filme do Woody Allen?"
 
O filme estreou há várias semanas e ainda lota as sessões, principalmente nos fins de semana, nos horários nobres (entre 18 e 22 horas), quando ir ao cinema é o início ou o encerramento de um bom programa de fim de semana.
 
Dá gosto ouvir a plateia cair na gargalhada com uma piada envolvendo a testosterona exacerbada de Hemingway ou a obsessão de Salvador Dalí com rinocerontes. Ao aconselhar um colega de trabalho a ver o filme, o amigo fez uma ressalva: "Se você conhecer os personagens reais vai se divertir mais ainda". É a pura verdade.
 
Quem dedicou algumas horas de seu tempo para ler Hemingway, Fitzgerald e T.S. Elliot, ver filmes de Luis Buñuel, contemplar quadros de Picasso e Dali ou ouvir canções de Cole Porter, certamente se divertirá mais. Que sirva de lição para o futuro: leia bons romances e poemas, acompanhe exposições de arte, ouça muito jazz porque, quem sabe, você precisará dessa experiência no futuro para poder dar boas risadas no cinema. Pelo menos, fica a sensação de que o tempo não foi perdido e a televisão desligada não fez falta alguma.

Velozes e furiosos: na caça de Bin Laden

Vou dar de graça (olha só o meu espírito desprendido) uma ideia para os produtores da franquia "Velozes e furiosos", que, tenho certeza, vai agradar aos fãs dessa saga "épica", depois do sucesso das incursões pelas comunidades cariocas.

O filme pode aproveitar a onda de descrença que envolve a morte do hirsuto terrorista (tem gente que quer ver o corpo para acreditar; tem um afegão que jura que o cara que foi morto era um vizinho dele) e colocar os manos do filme na perseguição daquele que não pode ser nomeado.

O filme pode começar com o discurso do Obama anunciando a morte do Bin Laden. Acompanhando pela TV, aquele fortão que mal consegue pronunciar uma frase (vin diesel, vin gasolina, vin etanol, sei lá) dá um murro no aparelho e grita: "bullshit, é mentira". Em seguida liga pros outros manos e combina de saírem em perseguição do terrorista.

Claro que o filme terá perseguições de carros no deserto, carros atolados na areia, corrida de camelos e muito narguilé. O objetivo do grupo é encontrar o barbudão e atropelá-lo de marcha a ré, no alto de um penhasco (não sei como os carros chegarão lá, mas os caras dos efeitos especiais resolvem). A câmera mostra o corpo caindo, em câmera lenta e o turbante do bin se desenrolando, fazendo movimentos circulares com a ação do vento. Nesse momento percebemos que o terrorista é carequinha da silva.

Acho que vai bombar nos cinemas. Se for em 3D, então, nem se fala.

Cage não me deixa na mão

Tenho verdadeira atração por filmes ruins. Sempre que vai estrear uma "obra de arte" dessas, peço para escrever aqui no Cineweb. Vi Fúria Sobre Rodas e posso garantir: o filme é impagavelmente ruim.  Isso não me impediu de prever que seria o campeão de bilheteria no fim de semana de estreia no Brasil. Como também acredito que o fato de ter estourado a boca do balão não significa que todas as 140 mil pessoas que o assistiram gostaram do que viram na tela.
 
No Brasil, filmes de ação (sejam bons ou ruins) sempre rendem bilheteria. Conheço gente que sai do cinema reconhecendo que o filme é ruim de doer, mas não se lamenta de ter perdido quase duas horas de seu tempo e ter ficado uns 20 reais mais pobre. Parece que o desafio de suportar bravamente roteiros medíocres, atuações pavorosas e cenários toscos é uma espécie de sacríficio a que é obrigada a se submeter. Como se estivesse pagando algum pecado ou tivesse feito algo inominável na encarnação pregressa.
 
Vou além na minha análise: ver filme ruim é uma espécie de Nosso Lar (filme também horrível) desse suposto pecador. Ou seja, é aquele pântano que ele tem de chafurdar antes de alcançar o aprimoramento pleno de sua alma. Por desenvolvimento espiritual pleno,  entenda-se estar pronto para ver filmes de Bergman, Truffaut, Kurosawa, Nelson Pereira dos Santos.
 
Sei que o sofrimento é grande, mas se esse é o preço para se estar pronto para receber a iluminação de espíritos cinematográficos de grandeza, acho que vale a pena.
 
No meu caso, que sonho um dia chegar ao Nosso Bar e não ao Nosso Lar, assistir filme ruim é uma espécie de esporte grotesco, como jogar futebol com bola furada ou rebater bola de tênis com raquete quebrada. É um desafio de superação. Estou testando até onde posso aguentar sem correr risco cerebral grave e permanente.
 
E Nicolas Cage tem sido um companheiro insuperável. Ela nunca me decepciona: tenho certeza de que o próximo filme dele será  sempre o pior.

Fim do Belas Artes faz parte da invasão dos bárbaros

Não seria exagero afirmar que pelo menos três gerações de paulistanos começou a amar o cinema numa das seis salas do Belas Artes, numa época em que o circuito de filmes de qualidade se restringia a poucas salas na região da avenida paulista  e na região central da cidade.  Época em que, depois da sessão, os casais e amigos sentavam-se numa mesa de bar para discutir o que tinham visto, lembrar detalhes do roteiro, dos enquadramentos, da montagem. Época em que os sacos de pipoca eram minúsculos e em que os relacionamentos não eram virtuais.
 
Mesmo com todos os seus defeitos (que acompanharam o espaço desde o início de sua inauguração) os freqüentadores fechavam os olhos para as imperfeições (problemas na projeção, no som, nas cadeiras, no ar condicionado) e os abriam para o que se passava na tela. Com o florescimento do Espaço Unibanco, o surgimento do Frei Caneca e a boa programação e o charme do CineSesc, o Belas Artes entrou em declínio, mas se levantou com o patrocínio do banco HSBC.
 
O Belas Artes paga o preço pela especulação imobiliária, pelos impostos elevados e pelo avanço impiedoso do cinema de consumo despejado na esmagadora maioria das salas da cidade. Com o fim do Belas Artes, que fecha suas portas no dia 27 de janeiro, se reduz ainda mais o espaço para exibição de filmes de qualidade e, por tabela, o cinema brasileiro deixa de atingir uma camada ainda maior de público. Na rede comercial, filme brasileiro só entra em produções estreladas e dirigidas por profissionais globais ou num único dia de promoção. Depois, dá-lhe Harry Potter, tome bizarrices em 3-D.
 
De 14 a 27 de janeiro, um pouco da história do Belas Artes estará contada na bela seleção de filmes escolhidos para encerrar as atividades do espaço com chave de ouro. Clássicos como “O Encouraçado Potemkin”, de Serguei Eisenstein, “Morte em Veneza”, de Visconti”, poderão ser vistos juntamente com os brasileiros “Sargento Getúlio”, de Hermano Pena, e “O bandido da luz vermelha”, de Sganzerla. Só não será exibida “A Última sessão de cinema”, de Peter Bogdanovich. Aí também seria pedir demais para quem está na sala escura tentando superar uma grande perda.

W de Wikileaks ou V de Vingança?

Qual sua frase clichê preferida: "a vida imita a arte" ou "a vingança é um prato que se come frio"? Talvez uma mistura das duas seja uma boa legenda para essa foto da Associated Press, feita durante uma manifestação de protesto em Madri contra a prisão de Julian Assange, do Wikileaks.

Na imagem, os manifestantes usam máscaras do personagem de V de Vingança, que nasceu nos quadrinhos e ganhou ótima adaptação para o cinema (o que é raro nessa transmutação artística). Quem leu o gibi e assistiu ao filme, identifica o espírito anarquista que  alimenta o personagem e que inspira os manifestantes.

Assange, cujo site divulgou correspondência de embaixadores americanos pelos quatro cantos do mundo, incluindo o Brasil, é um bisbilhoteiro incômodo, que defende a liberdade de imprensa e de expressão. E os internautas saíram em sua defesa no mesmo estilo anarquista do personagem criado pelo britânico Allan Moore: causando prejuízos. Tiram do ar a rede de computadores de empresas de cartões de crédito que suspenderam pagamentos ao Wikileaks.

Taí uma boa opção cinéfila e cultural para este fim de semana: ler o gibi de Moore ou assistir ao filme do diretor James McTeigue. Ou as duas opções. Podem também ser boas opções de presente para amigos secretos engajados.

Vamos com Mário Viana?

Mário Viana falando e Mário Viana escrevendo são absolutamente iguais. A piada rápida, a sacada esperta com que brinda os amigos nas rodas de conversas, são transpostas para seu texto de forma natural. Tenho grande dificuldade em escrever diálogos, pois quando os leio em voz alta soam muito artificiais. Por mais que me esforce para tornar o texto mais próximo do registro oral, não fico satisfeito. Mas o Mário é um exímio lapidador de diálogos. Me lembro muito das tiradas rápidas do Woody Allen, que emenda uma piada na outra e explora o politicamente incorreto. É difícil imaginar o humor sem o politicamente incorreto.

Fui ver "Vamos?" a nova peça que Mário estreou há uma semana, num dia frio, com teatro lotado. Nesse dia, ele comemorava o feito de ter cinco peças simultaneamente em cartaz. E todas com boa resposta do público e da crítica.  De todas as peças às quais assisti, "Vamos?" é a mais divertida. Acho que Mário chegou próximo da fórmula perfeita.

E a montagem, assinada por por Otávio Martins, tira proveito de um elenco bem entrosado que até parece fazer parte de uma companhia estável.

A história é simples e nasce de uma pergunta que muita gente já se fez: por que duas pessoas que são amigas não podem ir para a cama? Quem disse que isso arruinaria a amizade? Ao colocar dois casais em cena, com os mesmos interesses, Mário abre espaço para que a pergunta seja respondida. O resultado é um jogo divertido, em clima de comédia de erros e de stand up. Aconselho levar um caderninho para anotar as piadas e contá-las depois para os amigos. Ou então voltar para rir com as piadas novas que, com certeza, serão incorporadas.

Você viu o novo filme do Woody Allen?

Fui ver no fim de semana Tudo Pode Dar Certo, de Woody Allen. Deu um sabor especial chegar à bilheteria e pedir: "um ingresso para o filme do Woody Allen" e o funcionário entregar o bilhete para o filme certo. Um homem que estava atrás de mim na fila fez o mesmo pedido. Em outro cinema, tenho quase certeza que o atendente não saberia de qual filme se tratava. Essa é a diferença entre ir ao Unibanco e à LIvraria Cultura ou ir a um multiplex da vida e a uma livraria comum.
 
Gostei do filme, principalmente dos diálogos saborosos e extremamente rápidos. Estava com o Mário Viana e ele fez um comentário que, pensando bem, resume o filme: "Esse é um roteiro antigo que o Woody Allen escreveu". Nada a ver com a fase europeia do diretor, com temas mais elaborados (Match Point) ou completamente alucinados (Vicky Cristina Barcelona).
 
De certa forma, Tudo Pode dar Certo tem uma pegada à la Annie Hall, com uma linda mulher tontinha por quem é muito fácil se apaixonar, piadas rápidas e o recurso do personagem falar com a plateia. Está certo que Boris Yellnikoff, o personagem interpretado por Larry David, é uma mala sem alça, em nada lembrando Woody Allen em situações semelhantes. Se Woody interpretasse Boris, não conseguiria ser tão desprezível quanto David. Mas o diretor quer que impliquemos com Boris. Talvez esse seja seu alter ego.
 
O filme parece realmente antigo e até algumas das referências são datadas, da época em que Allen ainda filmava em Nova York. Mesmo assim, o filme tem momentos muito engraçados. Mesmo sendo um filme menor do diretor é muito melhor que muitos avatares da vida. É o tipo de filme para comentar com os amigos, relembrar as piadas e tentar não esquecê-las no dia seguinte. Na segunda-feira de manhã, antes de ligar o computador para começar o trabalho, você pode dizer aos colegas do escritório: "fui ver o último filme de Woody Allen". E todo mundo vai se interessar para saber dos detalhes e ninguém vai querer perder a chance de assisti-lo. E isso renderá assunto para muitos dias seguidos. Quando Fellini era vivo, era a mesma coisa.
 
 

Nem tudo foi azul na festa do Oscar

No anúncio do prêmio de roteiro, ontem à noite, na cerimônia de entrega do Oscar, a atriz que anunciou o nome do vencedor, leu um texto que tinha tudo para parecer uma brincadeira, daquelas piadas que só americanos riem. Nele, os roteiristas diziam que sonhavam com o momento em que seus diálogos não seriam mais  interpretados por gente de carne e osso. Supostamente, eles destroem as "pérolas" que eles escrevem. Os roteiristas, na verdade, deveriam agradecer aos atores, por mais canastrões que sejam, pois os seres criados digitalmente para substituí-los, estão levando seus textos para o buraco.

É preferível Marlon Brando com a boca cheia de algodão que os seres azuis que ajudaram James Cameron a encher seu cofre de dinheiro. Como no futebol, fez-se justiça aos bons jogadores e aos bons técnicos, e os azuizinhos pernas-de-pau foram pro chuveiro mais cedo, com apenas três estatuetas técnicas.

Seria uma grande injustiça se Cameron ganhasse os prêmios de melhor diretor e de melhor filme com o raso Avatar. Felizmente, para o bem do cinema e daqueles que escrevem para o cinema, a zebra ficou longe do Teatro Kodak. Foi a vitória do homem sobre o computador.