Em O Estranho, cineastas tornam o aeroporto de Guarulhos um dos personagens
- Por Alysson Oliveira
- 18/06/2024
- Tempo de leitura 4 minutos
Juruna Mallon e Flora Dias, nas filmagens de O Estranho durante a pandemia (Crédito: Divulgação)
Combinando documentário e ficção, o brasileiroO Estranho é, basicamente, um filme sobre como não-lugares, para usar um termo do antropólogo francês Marc Auge, se tornam lugares. Tudo depende, na verdade, do ponto de vista. Um não-lugar “clássico” é um aeroporto, onde as pessoas transitam, não estabelecem vínculos e laços. Isso, porém, se pensarmos apenas nos passageiros e passageiras, mas, levando em consideração, trabalhadores e trabalhadoras do local, eles e elas, sim, criam vínculos e transformam aquele não-lugar em lugar.
O Estranho tem ao centro funcionários e funcionárias do Aeroporto Internacional de Guarulhos, pessoas que fazem desse cenário seu trabalho, seu meio de sustento e também da criação dos mais duradouros laços. Flora Dias, diretora do longa ao lado de Juruna Mallon, conta que o filme começou quando, em 2014, estavam viajando muito. “Eu vivia em aeroportos. E, quando você passa muito tempo nesse lugar, passa a observar outras coisas, busca alternativas para o olhar”, observa a cineasta.
Para ela, buscar outros olhares é, além de tudo, uma forma de fugir de uma espécie de doutrinação do capital, que força a observar os produtos vendidos, os alimentos e afins. O ambiente é quase um personagem no filme que acompanha figuras fictícias, interpretadas por atores como Rômulo Braga, Helena Albergaria e Patricia Saravy, além de Antonia Franco e Laysa Costa, que não são atrizes profissionais.
Esse é o segundo longa de Mallon e Dias, ambos feitos juntos, o primeiro foi O Sol nos meus olhos. Ele tem experiência como compositor e editor de som, ela, como diretora de fotografia, e aqui conjugam mais do que isso na construção do filme. “Não temos uma fórmula pré-definida para trabalharmos juntos. A parceria se desenvolve na relação de amizade e afeto, nossos interesses se cruzam”, reflete o diretor, que mora na França.
Dias explica que a parceria no filme parte de muito debate, e os dois acabam se complementando. Trabalhando com uma equipe pequena e muito próxima, ela conta que dá autonomia aos seus parceiros, como por exemplo, à diretora que assina a fotografia em O Estranho, Camila Freitas. “Como o filme tinha um elenco gigante, eu me concentrei muito na função da diretora. É preciso deixar meu lado diretora de fotografia de fora, e confiar completamente na pessoa que está nessa função”, explica Dias.
Quanto à combinação de atores profissionais e outros sem experiência, eles recordam que oficinas com Helena Albergaria, que além de estar no elenco do filme é uma atriz experiente de teatro e cinema, foi fundamental na construção e no bom resultado do filme. “Foi um encontro muito importante. Os não-atores traziam algo com que um profissional não está acostumado. A Antônia tem algo único que empresta ao personagem. A Laysa tem uma tal força em cena que a personagem passou a ter o nome dela”, esclarece Mallon.
Embora partissem de um roteiro e de uma pesquisa extensa, a dupla também revela que estavam abertos a mergulhar na realidade e deixar que o filme se transformasse conforme as situações. Muito disso se revelou na montagem, assinada por João Marcos de Almeida. “Foi quase um ano de trabalho para chegar à forma final. Queríamos narrar de forma contundente. Era um processo de rever muito o filme, e também de experimentar como construir essa narrativa”, comenta o diretor.
Dias lembra também que o presente do momento das filmagens, durante a pandemia, sempre estará de forma marcante no filme. Mas há outros elementos históricos, digamos, que são fortes em O Estranho. Um deles é o local onde o aeroporto foi construído, apagando os vestígios da história dos povos originários da região. Eles apontam a construção como um acúmulo de ruínas que foram se sobrepondo ao longo dos séculos.
“O filme olha para trás na história da formação e modernização, mas isso nunca vai ser suficiente, sempre vai apresentar algo de novo a alguém”, explica Dias. E Mallon complementa: “O apagamento histórico é inerente ao capitalismo e ao processo de colonização. Fazer um filme sobre isso, levá-lo ao público é um movimento de resistência”.