O Brasil em muitas chaves
- Por Alysson Oliveira e Neusa Barbosa
- 31/10/2023
- Tempo de leitura 11 minutos
Muitas atrações no penúltimo dia da programação normal da Mostra, tendo em destaque filmes ou coproduções brasileiras. Confira:
Crowrã (A Flor do Buriti)
Na seção Un Certain Regard, a dupla João Salaviza e Renée Nader Medora conquistou um prêmio para o elenco desta produção, que retrata os indígenas Krahô, do norte de Tocantins, com seu total envolvimento na produção, roteiro e atuação. O prêmio ganhou ainda mais significado como instrumento de luta pelos direitos dos povos indígenas no Brasil, ainda ameaçados pelo marco temporal - o que foi objeto de um protesto, com faixas no tapete vermelho, na apresentação do filme no Festival de Cannes, em maio.
É a segunda vez que os diretores retratam o universo do povo Krahô - que eles haviam já abordado em filme anterior, premiado há 4 anos nesta mesma seção em Cannes, Chuva é Cantoria na Terra dos Mortos.
Com o total engajamento dos Krahô, os diretores retratam um cotidiano que incorpora as tarefas cotidianas, os rituais e o convívio com a natureza num céu coalhado de estrelas - no Cerrado do Centro-Oeste - e também a reconstituição de um massacre ocorrido há décadas, mas cujas marcas ainda se fazem sentir. Esse relacionamento conflituoso com os “cupe” (o homem branco), particularmente com um certo agronegócio predatório, que invade terras indígenas com seu gado e pistoleiros, injeta uma dor, mas também uma energia de mobilização.
Prova disso é uma grande movimentação de diversos povos indígenas, acampados em Brasília e participando de manifestações, ainda durante o governo Bolsonaro, em que a futura ministra Sonia Guajajara tinha uma participação destacada.
Ao final das duas horas de projeção em Cannes, além dos aplausos, a sala Debussy testemunhou os indígenas Krahô presentes entoando seus cantos tradicionais e tocando maracas, elevando bastante o nível da emoção do público. (Neusa Barbosa)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA AUGUSTA SALA 1
31/10/23 - 21:50 (ÚLTIMA SESSÃO)
31/10/23 - 21:50 (ÚLTIMA SESSÃO)
Puan
A saborosa comédia dramática dos diretores argentinos Maria Alché e Benjamín Naishtat (de Vermelho Sol) saiu duplamente premiada do Festival de San Sebastián, com troféus para seu roteiro (assinado pelos diretores) e também para o ator Marcelo Subiotto, que interpreta o protagonista, um professor de filosofia também chamado Marcelo.
Ele leciona na universidade pública de Buenos Aires, onde assentou sua carreira tendo como mentor seu mestre, Eduardo Caselli. Quando este morre repentinamente, abre-se o que parecia ser um caminho seguro para a promoção de Marcelo. Porém, apareceu um imprevisto neste rumo: a chegada de outro professor, Rafael Sujarchuk (Leonardo Sbaraglia), que foi estudar na Europa e se transforma num inesperado rival para o posto de professor titular do departamento.
O roteiro se equilibra, numa chave, na composição destas duas personalidades opostas: o contido e metódico Marcelo, uma pessoa dedicada e cuidadosa mas a quem falta um pouco mais de ousadia; e o autoconfiante Sujarchuk, capaz de mostrar-se exuberante, sedutor e vaidoso, conquistando a simpatia de alunos e professores e também até uma atenção midiática, já que namora uma famosa atriz.
Estas duas personalidades distintas abrem caminho à exploração de outra chave que o roteiro igualmente investiga muito bem, o contexto político e social do país, em que a universidade pública é depauperada por cortes que levam a paralisações e repressão policial.
Coprodução com o Brasil, Itália, França e Alemanha, o filme é um retrato matizado da classe média argentina, que tem, certamente, inúmeros pontos de contato também com a realidade brasileira - e não abre mão, dentro dele, da ironia e do afeto que unem nossos dois países numa mútua compreensão. (Neusa Barbosa)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA AUGUSTA SALA 1
31/10/23 - 17:10 (ÚLTIMA SESSÃO)
31/10/23 - 17:10 (ÚLTIMA SESSÃO)
O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho
O termo “teatro filmado” costuma ter um tom pejorativo, mas em O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, Bia Lessa subverte essa ideia, procurando na linguagem teatral um lado cinematográfico no sentido de compor uma experiência bastante particular nessa adaptação de Guimarães Rosa.
Grande Sertão: Veredas é marcado pela linguagem modernista de Rosa, que trabalha
a partir do registro oral. No filme, Lessa parte de uma montagem teatral de sucesso para recriar na tela a trajetória de Riobaldo a partir da experiência dela com esse mesmo texto no teatro. O resultado é um filme que, provavelmente, resultará em reações extremas. Possivelmente, é mais um “ame ou odeie”.
a partir do registro oral. No filme, Lessa parte de uma montagem teatral de sucesso para recriar na tela a trajetória de Riobaldo a partir da experiência dela com esse mesmo texto no teatro. O resultado é um filme que, provavelmente, resultará em reações extremas. Possivelmente, é mais um “ame ou odeie”.
Riobaldo (Caio Blat) resgata suas experiências desde a juventude, narrando-as de maneira não-linear, sempre ao lado de Diadorim/Reinaldo (Luiza Lemmertz), um figura misteriosa que parece viver numa zona limítrofe entre o real e o imaginário. Há também a figura de Norinhá, interpretada por Luísa Arraes, que também faz Riobaldo jovem.
Lessa, experiente no teatro, brinca então com a peculiaridade das duas formas, cinema e teatro, encenando a peça para a câmera, mas não apenas isso. Cinema, como se sabe, se constrói na montagem, e é nela que reside parte da força do longa. A construção da narrativa embaralhada oferece a possibilidade das diversas técnicas de montagem, fragmentando não apenas a narrativa, mas também o sujeito que habita o sertão – ambos são uma incógnita a ser desvendada. (Alysson Oliveira)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 4
31/10/23 - 17:45 (ÚLTIMA SESSÃO)
31/10/23 - 17:45 (ÚLTIMA SESSÃO)
Estranho Caminho
David (Lucas Limeira) é um jovem cineasta que volta à sua cidade natal, Fortaleza, para apresentar seu novo filme num festival. Seria um momento de alegria e rever os amigos, mas isso acontece exatamente em meados de março de 2020, quando os primeiros casos de Covid começam a ser diagnosticados no Brasil. A partir daí, Estranho Caminho segue uma jornada inesperada de conciliação.
Escrito e dirigido por Guto Parente, este é um filme sobre isolamentos, embora não seja exatamente sobre a pandemia. Essa aparece mais como um catalisador da trama e das ações das personagens do que um elemento da narrativa. O isolamento social, aquele momento de enorme estranheza, obriga David a olhar a si mesmo.
Tudo acontece aos poucos e de forma rápida. Primeiro o festival é adiado, depois David não consegue voltar para o Rio de Janeiro, voos e mais voos são cancelados. Por fim, o hotel de baixa qualidade onde se hospedou fecha, deixando-o desalojado. A única saída é buscar abrigo na casa do pai, Geraldo (Carlos Francisco), com quem tem uma relação problemática.
Parente olha de forma carinhosa para esses dois personagens, homens cujas vidas se afastaram e agora, meio a contragosto, precisam dividir o mesmo espaço, sem intimidade, com pouco conhecimento um do outro. É um olhar delicado do diretor na percepção de como os afetos podem ser recuperados diante das adversidades.
As coisas acontecem, primeiro, de forma lenta, e, depois, de repente, tal qual a pandemia. A masculinidade tóxica, um tema tão corrente, é esmiuçada na percepção de como pode ser uma construção social desconstruível. Parente retrata o estranho caminho da reaproximação forçada, que é exatamente quando pai e filho percebem-se além dos laços familiares, como pessoas com sonhos, alegrias, ansiedades e tristezas. A grande surpresa é perceber que o outro é igual a nós. (Alysson Oliveira)
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 2
31/10/23 - 13:30 (ÚLTIMA SESSÃO)
31/10/23 - 13:30 (ÚLTIMA SESSÃO)
Última chance também para ver alguns dos nossos títulos preferidos na Mostra:
Vampira Humanista procura Suicida Voluntário
O título original desta deliciosa comédia dramática canadense, vencedora do prêmio de melhor filme na seção Jornada dos Autores do Festival de Veneza, cumpre o que promete – é exatamente a história de uma jovem vampira relutante, Sasha (Sara Montpetit), cujas presas nem sequer se pronunciaram e que se recusa a seguir o instinto familiar para obter o sangue do qual depende sua vida; e um rapaz deprimido e tímido, Paul (Félix-Antoine Bénard), que está criando coragem para se suicidar para escapar do sentimento de inadequação e do bullying infernal que sofre em sua escola.
O encontro entre os dois promete resolver o dilema da vida de cada um e o roteiro, assinado pela diretora estreante Ariane Louis-Seize juntamente com Christine Doyon, toma diversos rumos para criar um final instigante para o que poderia tornar-se um dramalhão – com espaço inclusive para um sugestivo retrato das relações familiares tanto de um quanto do outro protagonista. O clã vampiresco é particularmente impagável. E, como se poderia esperar, o humor negro jorra aos baldes. (Neusa Barbosa)
CINEMATECA ESPAÇO PETROBRÁS
31/10/23 - 19:00 (ÚLTIMA SESSÃO)
31/10/23 - 19:00 (ÚLTIMA SESSÃO)
Excursão
Exibido na mostra Cineastas do Presente do Festival de Locarno, e escolhido como representante da Bósnia-Herzegovina para o Oscar, Excursão é uma investigação e, ao mesmo tempo, um exercício de crueldade adolescente.
Segundo longa solo na direção da montadora Una Gunjaka, o filme tem como protagonista Iman (Asja Zara Lagumdzija), uma adolescente de 15 anos que alimenta uma mentira que se transforma numa bola de neve em sua escola, descarrilhando sua vida e de todos ao seu redor. Enquanto seus colegas e a escola discutem sobre o destino, ela deixa uma história correr solta.
Numa conversa casual com outros colegas, uma menina conta a Iman que estão dizendo que ela perdeu a virgindade com um garoto que todos conhecem. Ela pergunta detalhes e, ao contrário do que todos esperam, ela não nega. Por conta disso, ela acaba de tornar-se mais famosa na escola, todos a olham de outro jeito. Ao mesmo tempo, a história ganha outras proporções quando, possivelmente querendo mais atenção, a protagonista vomita no pátio da escola e diz que pode estar grávida.
Há também o retrato de uma amizade tóxica. Iman tem uma melhor amiga, Hanna (Nadja Spaho), com quem não apenas divide a carteira escolar, como também conta tudo. As duas, no entanto, levam vidas bem diferentes em suas famílias. A amiga tem uma família mais estruturada, pais mais severos, enquanto Iman tem uma mãe trabalhadora que não consegue dar tanta atenção à filha e ao filho quanto queria.
Gunjaka trabalha sempre num campo de ambiguidade. Por muito tempo, desconfiamos das mentiras de Iman, mas não temos certeza. Suas amigas compram as histórias sem qualquer questionamento, mas a evolução de tudo acaba saindo de controle. Quando a história chega aos pais dos alunos, a menina já não é mais bem-vinda na excursão.
O ponto forte aqui, além do realismo empregado por Gunjaka, é a interpretação de Lagumdzija. Estreante no cinema, a atriz tem completo domínio da personagem e uma grande compreensão de suas contradições. O filme, em si, não parece ser capaz disso também, e, de certa forma, sente certo prazer em acompanhar a virada na história, quando de pequena celebridade rebelde da escola, a protagonista se torna vítima da turba. (Alysson Oliveira)
CINEMATECA SALA GRANDE OTELO 31/10/23 - 19:00 (ÚLTIMA SESSÃO)
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