Cineasta Felipe Carmona revê ditadura chilena em chave realista fantástica
- Por Neusa Barbosa
- 27/10/2023
- Tempo de leitura 9 minutos
Partindo de um tema que já o inspirara para uma peça de teatro, o cineasta chileno Felipe Carmona criou em Prisão nos Andes, seu longa de estreia, uma história que parece surreal, mas parte de um episódio verídico: uma prisão cheia de privilégios para militares condenados por torturas e desaparecimentos na ditadura Pinochet e que enfrentam o pânico quando são ameaçados de perderem suas mordomias.
Nesta entrevista exclusiva, feita por e-mail, Carmona detalha as circunstâncias de realização do filme, que tem estreia no Chile prevista para novembro e sua última sessão na Mostra neste sábado (28/10), no Espaço Itaú Augusta 4.
Você já havia escrito uma peça de teatro com o mesmo nome e o mesmo assunto. Ela entrou em cartaz nos teatros? Qual foi sua repercussão? O que o filme lhe permitiu ampliar dessa história ?
FC – Exatamente. Estreei uma peça de teatro chamada “Cordillera”, que teve uma temporada de sucesso por salas de teatro e no Festival Santiago a Mil, que é o mais importante do Chile. A peça teve muito público e repercussão midiática. No entanto, de nenhuma maneira, o filme não é uma adaptação dessa peça; os dois somente compartilham dessa premissa dos torturadores prisioneiros numa prisão cheia de privilégios. Quando comecei a escrever o roteiro junto com meu assistente, o cineasta argentino Alejandro Fadel, nos propusemos a afastar-nos da peça e tomar um novo rumo muito mais desafiador, valendo-nos de todos os recursos da linguagem cinematográfica. Assim, em cada reescritura do roteiro, íamos intercalando os gêneros, acentuando o absurdo e o terror, algo que resulta bem articulado na cenografia, na fotografia, na música e no desenho sonoro.
Essa prisão cheia de privilégios, a Penal Cordillera, realmente existiu do jeito que você a retrata? Ou você se permitiu inventar alguns dos privilégios vistos no filme?
FC: Os privilégios existiam mesmo: as churrasqueiras, as piscinas, a televisão a cabo, a quadra de tênis, visitas a toda hora, etc. Mas a prisão real, esteticamente, não me agradava, pois se trata de uma construção moderna, com muito cimento e uma arquitetura no geral pouco interessante. Então decidimos manter os mesmos privilégios mas imaginar essa prisão como uma velha casa de vampiros ao pé das montanhas, onde esses velhos corpos caminhariam pelas trilhas, divagando ou divertindo-se em passatempos. Há coisas que realmente inventamos, como o aviário, porque me pareceu mais interessante mostrar um general comover-se com aves do que vê-lo jogando tênis.
Essa prisão existe ainda?
FC: Existe ainda, mas já não funciona como prisão. Continua em poder do exército, mas hoje é utilizada para outros fins. Um detalhe é que foi a partir desse lugar que se planejou o bombardeio ao palácio presidencial de La Moneda, em 1973, que derrubou o governo Allende.
Você usou os nomes reais desses cinco célebres torturadores, não? Houve algum problema para você por conta disso, algum processo ? Algum deles está vivo ainda, e preso? Eles foram transferidos para uma prisão comum, afinal?
FC: Sim, usamos os nomes reais, mas em alguns casos somente os primeiros nomes, em outros só os sobrenomes. Tivemos assessoria legal a respeito. Mas, como o filme estreia em novembro no Chile, ainda não sabemos se haverá algum processo neste sentido. Alguns dos personagens já morreram e há dois que continuam presos e cujas sentenças foram aumentadas (Krassnoff e Pedro Espinoza estão vivos). Eles foram transferidos para uma prisão construída para eles que, ainda que não tenha mordomias, assemelha-se muito mais a uma prisão nórdica ou do primeiro mundo. Junto deles há outros militares de menor patente que foram sendo condenados também por seus crimes durante a ditadura.
No seu filme, você usa uma estética do cinema mudo e em preto-e-branco para retratar uma memória de Augusto Pinochet por parte do brigadeiro Krassnoff. Por que lhe ocorreu essa forma? Que efeito você quis produzir?
FC: Desde o roteiro, queria que o personagem de Krassnoff recordasse a figura de Pinochet, mas que não fosse um simples flashback ou algo fugaz e sim que fizesse parte do filme, como um microfilme dentro do próprio filme. Quando filmamos, eu tinha a idéia de narrar tudo com a voz em off do personagem de Krassnoff e que só se ouvissem os sons produzidos pelos movimentos ou objetos como os livros e o fogo, um pouco como a segunda parte de Tabu, de Miguel Gomes. Porém, quando montamos o filme aqui em São Paulo, com Olivia Brenga, em 2022, sentimos que alguma coisa não funcionava. Pensamos inclusive em descartar a sequência, que era em cores. Mas, pouco a pouco, fui pensando na idéia do cinema mudo e destes vampiros, imaginando Pinochet em sua biblioteca lúgubre, como um Nosferatu. Tentamos com os letreiros, música de referência e gostamos. Mostramos aos produtores e a alguns amigos e todos gostaram também, assim continuamos montando como se estivéssemos nos anos 1920. Mariá Portugal convidou um pianista brasileiro para que fizesse uma música para acompanhar a montagem e logo trabalhamos em preto-e-branco na O2 junto com Mauro Veloso, diretor de fotografia. É verdade que é um delírio e que a muitos causa um estranhamento, mas a mim agrada. Sinto que todo o absurdo do filme se poderia resumir a essa sequência.
Na parte final, quando sobem os créditos, você usa uma gravação. O que é essa gravação?
FC: É T.S. Eliot, o poeta inglês, recitando seu poema A Terra Inútil (The Waste Land). Eu o inseri porque era um dos poetas favoritos, na vida real, do general Mena, o que cuida dos pássaros. Sempre me chamou muito a atenção essa dicotomia, essa comoção com a beleza da poesia e ao mesmo tempo ser um criminoso de lesa-humanidade. E os créditos me pareceram um bom momento para continuar acentuando esse contraste.
Nós, sul-americanos, compartilhamos o drama dos golpes militares, dos torturadores e de sua impunidade (no caso do Brasil, isso é especialmente verdade). Como no Chile de hoje esse passado é encarado pela população? Continua havendo uma vontade de que esses criminosos sejam punidos ou não?
FC: No Chile, depois da explosão social ocorrida durante o governo de direita de Sebastián Piñera, em 2019, houve por fim a oportunidade de mudar a Constituição. Mas o poder da direita, da elite do país, moveu todas as peças para que se descartasse essa proposta de uma nova Constituição. Hoje, se elabora uma nova proposta, porém, ela está sendo redigida por pessoas que se identificam com o pinochetismo. Quer dizer, o Chile está muito polarizado e há uma espécie de recaída em uma parte da população de sentir orgulho do que se fez na ditadura, negando as violações de direitos humanos cometidas na época. Inclusive, há pouco tempo, uma parlamentar afirmou numa emissora de televisão que tudo isso se tratava de uma lenda. Então, temos uma parte do país que está muito consciente de tudo que ocorreu, da barbárie e do horror vividos, e de outro lado gente que crê que estes militares foram heróis e que estão presos injustamente – inclusive, os consideram presos políticos.
No Brasil e em outros países, imagino que no Chile também, a extrema-direita ressurgiu com força. Como você encara a importância de filmes como o seu para alertar as pessoas sobre os riscos disso?
FC: Sim, também no Chile esses movimentos recobraram muita força, parece que há um rápido contágio. Mas não creio que meu filme seja uma advertência. Creio mais que aceita o fato de que, irremediavelmente, o monstro do fascismo habita e continuará habitando nossos países, inclusive além de qualquer ideologia e que pode brotar em qualquer de nós, em qualquer momento, seja num momento de pressão, seja num momento cotidiano ou banal, ainda que seja fugaz. Neste sentido, é um filme um tanto pessimista, que dá voz aos monstros. Porém, creio que essa voz é parte da humanidade, isso significa abrir um espaço de incomensurável humanidade. Os monstros, como os personagens do filme, existem precisamente porque são seres humanos.
Seu filme é resultado de um acordo de coprodução entre o Brasil e o Chile que foi bastante prejudicado no governo Bolsonaro ? Houve um atraso significativo, segundo soube, na liberação de recursos e tudo o mais. Finalmente, o Brasil entrou somente na parte de finalização de seu filme, através da 02?
FC: Foi exatamente isso, houve um atraso na liberação dos fundos durante o governo Bolsonaro. Todo o meio cinematográfico a nível global estava a par das dificuldades para que os cineastas brasileiros continuassem produzindo. Isso nos espantava, porque o Brasil sempre foi uma referência da indústria latinoamericana. No nosso caso, por sorte, as medidas de controle da covid foram muito rígidas no Chile e filmar em plena pandemia era excessivamente caro. Assim, optamos por adiar a filmagem e assim esperar os fundos do Brasil. Mas também é verdade que, num determinado momento, demos por praticamente perdidas essas verbas. Mas, finalmente, além do trabalho extraordinário de Daniel Pech e da Multiverso na produção e da O2 na pós-produção, também contamos com a montagem de Olivia Brenga, Daniel Turini fez o desenho de som e Mariá Portugal criou a música. Todos eles, artistas brasileiros, fizeram um trabalho que me deixou muito feliz. Todos são muito criativos, talentosos e muito profissionais.
Relacionadas
O Brasil em muitas chaves
- 31/10/2023
Reta final com estilo e criatividade
- 30/10/2023
Encontro marcado com Antonioni
- 25/10/2023
No embalo da literatura e outras artes
- 25/10/2023
Os dilemas da colonização e da guerra
- 24/10/2023
Em dia com o suspense e com a música
- 22/10/2023
Um final de semana para todos os gostos
- 21/10/2023
As batalhas da juventude
- 19/10/2023
Apostas na tradição e na descoberta
- 18/10/2023
Uma Mostra do tamanho do mundo
- 17/10/2023