20/09/2024

Os dilemas da colonização e da guerra

Filmes sobre crianças e jovens e colocando em foco os deslocamentos e a colonização estão entre os principais destaques do dia.


Os Colonos
Escolhido pelo Chile como seu representante no Oscar, Os Colonos é um drama histórico de profunda beleza visual e uma crítica sócio-histórica certeira, mostrando como o passado colonizador ainda ressoa no presente – não apenas do Chile, mas da América Latina, em sua cruel dizimação dos povos originários.

O filme é dirigido pelo estreante Felipe Gálvez Haberle, que demonstra um impressionante domínio estético, narrativo e, acima de tudo, político-social aqui, ilustrando a máxima de Walter Benjamin, para quem “todo monumento de civilização é um monumento de barbárie”. O processo dito civilizatório, como bem comprova a história, consiste na imposição do um modo de vida pelos donos do dinheiro e, consequentemente, do poder.

No Chile do século XIX, um tenente escocês Alexander MacLennan (Mark Stanley) e um caubói americano, Bill (Benjamin Westfall), importado do Texas, atravessam o país rumo ao extremo-sul, a Terra de Ninguém, contratados por um membro da elite local, José Menéndez (Alfredo Castro), com propósitos sanguinários. Eles são acompanhados por um mestiço, Segundo (Camilo Arancibia), que observa muito atentamente, mas sem poder de agência.

O roteiro, no entanto, escrito por Antonia Girardi, Gálvez Haberle e Mariano Llinás, aos poucos toma o ponto de vista dele, transformando o longa num western pós-colonial de tintas fortes na fotografia de Simone D'Arcangelo. O filme é dividido em três partes, cada uma se iniciando com grandes letreiros vermelho-sangue.

O tema central é o massacre dos povos originários, mas Gálvez Haberle constrói a dramaturgia de forma assombrosa – com ajuda da trilha espectral de Harry Allouche – fazendo deste um filme, ao mesmo tempo, épico e intimista em seu retrato íntimo das pessoas e do processo histórico.




A janela acadêmica, o formato quadrado, parece ser o favorito para os filmes históricos sobre processos de colonização. É sufocante e, ao mesmo tempo, tenta reduzir a grande paisagem virgem dos arredores da Cordilheira dos Andes. O resultado é um filme que parece de uma outra época – lembra e muito a estética da Nova Hollywood dos anos de 1970. Se Onde os homens são homens, de Robert Altman, não for uma referência aqui,
Gálvez Haberle o fez de forma inconsciente. Tanto a maneira como a luz incide, ou os zooms, tudo remete a um passado imemorial.

O prólogo que coloca em cena a elite é devastador. É o elemento que junta passado e o presente, em sua reverberação na destruição e no movimento de barbárie. Ao mesmo tempo, a cena final é lindamente a resistência e, talvez, uma gota de esperança diante da dita civilização. (Alysson Oliveira)

ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 4
24/10/23 - 21:10
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 2
28/10/23 - 16:30
CINEMATECA SALA GRANDE OTELO 30/10/23 - 20:20


O espectro do Boko Haram
Premiado com o Tigre de melhor filme do Festival de Roterdã, o documentário da diretora camaronesa estreante Cyrielle Raingou tem a veemência da dura realidade de crianças afetadas pela ação criminosa do grupo fundamentalista islâmico Boko Haram na fronteira entre a Nigéria, os Camarões e o Chade.

Com suas frequentes incursões terroristas, produzindo atentados, sequestros e ataques armados, o grupo desarticulou a vida cotidiana das populações camponesas dessa fronteira centro-africana, hoje vivendo sob a vigilância permanente de seus exércitos fortemente armados para manter funcionando suas escolas - alvo preferencial dos ataques dos fanáticos do grupo.

O foco do sensível documentário da diretora está justamente numa escola localizada nos Camarões, próxima à fronteira nigeriana, que atende não só crianças locais como de outras regiões, deslocadas pelos ataques - algumas delas, tornadas órfãs ou abandonadas por conta deles.

A câmera segue particularmente três personagens que definem o estado de emergência dessa infância: Falta, uma menina estudiosa, filha de uma jovem mãe de cinco filhos tornada viúva por um ataque de homem-bomba; e os irmãos Mohamad e Ibrahim, cujos pais estão desaparecidos e que são o maior problema do dedicado professor, já que costumam fugir e não conseguem integrar-se plenamente à rotina. No comportamento de todos eles, ecoam sinais dessa permanente tensão e também da esperança, depositada pela mãe de Falta, na educação da filha - já que a perspectiva de um futuro melhor não a abandonou.

Muito simples e enxuto - sem dúvida, realizado dentro das diversas limitações da própria situação que retrata -, o documentário traz uma amostra singular da vida desta pequena comunidade, que tenta levar suas atividades diárias adiante, mesmo tendo que conviver com a onipresença de soldados armados com metralhadoras à sua volta. E com medo de que os fanáticos reapareçam. (Neusa Barbosa)

ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 5
24/10/23 - 14:00
CIRCUITO SPCINE LIMA BARRETO - CCSP

28/10/23 - 17:00


Represa
Vencedor de quatro prêmios no Festival de Vitória (melhor filme, direção, roteiro e fotografia), a ficção cearense Represa, do diretor estreante Diego Hoefel, tem como cenário as ruínas da antiga Jaguaribara, cidade do sertão do Ceará que foi coberta pelas águas há mais de 30 anos atrás, para a construção de uma represa. No entanto, suas ruínas vêm reaparecendo desde 2015, devido a sucessivas secas.

Este cenário coberto de escombros é o ambiente percorrido pelo protagonista, Lucas (Renato Linhares), um gaúcho que vem procurar um irmão cuja existência descobriu há pouco. Ele é Robson (Gilmar Magalhães), um morador local que se transformou numa espécie de guia turístico para forasteiros interessados em conhecer as ruínas e seu lago - uma metáfora para a arqueologia social de um Brasil desfigurado por várias decisões políticas equivocadas, com efeitos desastrosos sobre as pessoas e o ambiente natural.

Tendo estreado mundialmente no Festival de Rotterdam, em fevereiro, Represa tem no elenco novos nomes do cinema cearense, como Jennifer Joingley, que interpreta Josy, filha de Robson, e David Santos, como o descolado guardião de uma pousada. A partir desse quarteto, o filme constrói sua dramaturgia, que aposta numa narrativa lacunar, que não dá todas as respostas e avança aos solavancos, entre esses escombros de um passado cujas chaves nem Lucas nem Robson dominam.

Eles são filhos de uma mesma mãe que, anos atrás, partiu do Ceará para o Rio Grande do Sul, o que motivou que os irmãos nem soubessem da existência um do outro. Assim, construíram trajetórias muito diferentes, o gaúcho mais urbano, o cearense mais rural, com comportamentos moldados pelas respectivas facilidades ou asperezas.

O roteiro, assinado por Hoefel, Marcelo Grabowsky e Aline Portugal, incorpora não só os sentimentos fluidos de dois homens muito diferentes como também esses coadjuvantes do lugar, como a filha de Robson, o rapaz da pousada e outros moradores deste lugar meio no fim do mundo, meio fronteira de muitas coisas, onde tantas vidas se equilibram e se expressam - e o filme se vale muito do não-verbal, da fotografia, dos sons, das paisagens, das festas, para moldar o ambiente deste trajeto, que não pertence só a Lucas, mas a todos os outros e cujo destino de busca parece mudar ao longo do caminho.

Neste e em todos os sentidos, trata-se de uma estreia promissora do diretor, gaúcho radicado no Ceará, professor da UFC, realizador de curtas e corroteirista de filmes como Elon não acredita na morte (2016) e Corpo Delito (2017). (Neusa Barbosa)

CINECLUBE CORTINA










24/10/23 - 18:30 (ÚLTIMA SESSÃO)

Fotofobia
O documentário de Ivan Ostrochovský e Pavol Pekar?ík investiga, entre outras coisas, como um não-lugar se torna um lugar. Uma estação de metrô em Kharkiv, um lugar de transição e movimento, onde pessoas passam pouco tempo, torna-se o abrigo para dezenas de famílias ucranianas durante a guerra.

Ostrochovský e Pekar?ík chegaram à Ucrânia em 2022, por razões humanitárias, e acabaram encontrando essas pessoas vivendo nessas condições. As crianças, sem qualquer contato com o mundo exterior, começavam a apresentar sintomas de depressão, fora a deficiência de vitamina D, pela falta de sol. Fazer o filme com elas foi também uma forma de aliviar a dura realidade.

Combinando documentário e encenação, o filme é narrado pelo ponto de vista do pequeno Niki (Nikita Tyshchenko), que vive na estação, que serve como abrigo antibombas depois que a casa deles foi destruída. As outras famílias vivem o mesmo drama.
Lá ele conhece Vika (Viktoriia Mats), de 13 anos, na mesma situação e iniciam uma amizade. Talvez seja o ponto falho do filme forçar um quê de Romeu e Julieta entre eles. Embora seja compreensível que há algo de lúdico nisso, no romance juvenil, ainda assim, soa deslocado, pouco orgânico.

Enquanto também mostra a superfície, a Ucrânia devastada, o filme nos lembra dos horrores que duram mais de um ano no país. E, no submundo da estação de metrô, encontramos as vidas paradas no tempo, à espera de poder voltar para o lado de fora. (Alysson Oliveira)

ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 1
24/10/23 - 19:50
RESERVA CULTURAL - SALA 1 30/10/23 - 19:30
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA AUGUSTA SALA 1 31/10/23 - 13:30

Vadio
Situando o filme na crise econômica de Portugal do começo da década passada, Simão Cayette cria em Vadio uma observação sobre a desolação pessoal a partir dos problemas sociais. É um filme contido, como seus personagens, que têm certa dificuldade em se expressar e buscam, de um lado para outro, sobreviver.

O título coloca o foco num olhar de fora para dentro do drama do protagonista, um adolescente de 13 anos chamado André (Rúben Simões). Ele vive na região do Alentejo, na companhia do pai, que vive de fazer perfurações na terra para poços artesianos. Porém, ele é pouco centrado e, depois de um golpe, a vida dos dois está destruída.
Pensando não ter saída, o pai deixa André numa espécie de orfanato, sem que o garoto saiba. Acredita que está indo para a escola, mas, quando percebe, foi abandonado. Ao conseguir fugir, ele volta para casa e a encontra vazia. A única ajuda que vem é de Sandra (Joana Santos), uma desconhecida hospedada na casa ao lado, que também passa por uma crise emocional.

Ela é professora de uma cidade vizinha, mas precisou sair de lá – o motivo será revelado aos poucos – e se refugiou naquele lugar isolado. Ela é uma mulher que perdeu a guarda da sua filha, enquanto André perdeu o pai. É um facilitador do filme juntar os dois personagens com objetivos próximos, mas Cayette encontra na questão social a base para a dramaturgia.

O longa se situa durante o governo do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, que, entre outras coisas, sugeriu que os professores fossem embora de Portugal, já que não tinham nada para fazer ali, segundo ele. É nesse cenário desolador que os personagens do longa tentam sobreviver. Vadio é um filme duro e árido, mas com um olhar carinhoso por André e Sandra, duas figuras à margem de uma sociedade marcada por grandes diferenças sociais. O mundo pode vê-los como dois vadios, mas o longa mostra que, na verdade, é o contrário. (Alysson Oliveira)

INSTITUTO MOREIRA SALLES - PAULISTA 25/10/23 - 16:00
KINOPLEX ITAIM SALA 2 30/10/23 - 17:30


O barulho da noite
Neste raro exemplar de longa produzido no estado do Tocantins, a produção atribulada estendeu-se ao longo de 20 anos. A diretora Eva Pereira pesquisou a história de muitas mulheres no Tocantins para elaborar um roteiro abordando o difícil tema do estupro e do abuso sexual contra crianças. Ao centro do drama, está a família formada pelo sitiante Agenor (Marcos Palmeira), sua mulher Sônia (Emanuelle Araújo) e as duas filhas pequenas (Alicia e Analice), cuja rotina é abalada pela chegada de um misterioso sobrinho, Ataíde (Patrick Sampaio). O desejo feminino é motor da história, quando Sônia vê despertada sua sexualidade por Ataíde, numa ausência do marido, precipitando um drama que arrasta a família e afeta também o destino de suas filhas.

As decisões tomadas pela personagem feminina na história provocam vários incômodos, especialmente pela passividade e a inação com que ela se comporta quando fica clara a ocorrência de um abuso contra sua filha. No debate do filme, ocorrido em seu lançamento no Festival de Gramado, a diretora e roteirista, assim como a atriz Emanuelle Araújo, defenderam as escolhas da ficção: “O incômodo é importante e necessário. O que existe, nessas situações, são mulheres sozinhas. Se elas falarem, morre todo mundo. Elas não falarem é uma defesa. Que esse incômodo possa levar a gente a olhar esse Brasil escondido como ele é”, afirmou a atriz. A diretora, por sua vez, ressaltou: “O que paralisa essas mulheres na denúncia é a total falta de apoio em volta delas, inclusive nos círculos familiares”.

No tocante às atrizes mirins, escolhidas na região do filme, a produção teve o cuidado de acompanhá-las com uma preparadora de elenco, Tatiana Muniz, e também um seguimento posterior às filmagens, com um psicólogo, para dar suporte em sua reinserção no meio rural de onde provieram. (Neusa Barbosa)

CINEMATECA ESPAÇO PETROBRÁS





24/10/23 - 19:00
ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 5
29/10/23 - 15:45