07/02/2025

Um toque fantástico, entre a pandemia e a paternidade

S. Miguel do Gostoso - Continuando num clima de resgate dos afetos, a Mostra de Gostoso apresentou o longa Estranho Caminho, em que o diretor cearense Guto Parente retrata a reaproximação de um filho, David (Lucas Limeira), e um pai (Carlos Francisco, de Marte Um). Separados há anos, inclusive porque o filho, cineasta, radicou-se em Portugal, os dois retomam contato por conta da pandemia - que tornou Fortaleza, como outros lugares pelo mundo, uma virtual cidade-fantasma.

Parente apropria-se desse clima de pesadelo real criado pela pandemia para ir ainda mais longe na sugestão de suspense e até do terror na medida em que coisas cada vez mais estranhas acontecem no apartamento dividido por pai e filho - onde as obsessões do pai potencializam os medos do filho. Por trás de tudo, insinua-se a quebra de laços afetivos que se procura reviver.

Integrante do grupo Alumbramento, sendo co-autor de longas desafiadores em termos de linguagem, como Os Monstros, O Dia dos Canibais, Estrada para Ythaca, Parente aprofunda um caminho já iniciado num delicado longa anterior, Inferninho, em que dividiu a direção com Pedro Diógenes e procura de um maior envolvimento com os sentimentos do público, ao traçar um perfil mais humanista e comum de seus protagonistas e suas vivências.

O toque fantástico conferido às descobertas do filho em relação ao pai é um sinal do aprofundamento das experiências de linguagem experimentadas pelo Alumbramento em seus primeiros longas, atingindo em Estranho Caminho uma fusão mais orgânica e atraente de todos os recursos do cinema.

Romance proletário
Na mesma linha humanista que tem marcado este festival, o longa final programado para esta noite de segunda (27) é o mineiro O Dia que Te Conheci, de André Novais Oliveira - que retrata trabalhadores da periferia de Belo Horizonte, o bibliotecário Zeca (Renato Novais) e a supervisora escola Luísa (Grace Passô), duas pessoas comuns que que ensaiam um romance possível.

Diretor de Temporada e Ela Volta na Quinta, Novais é um diretor sensível, capaz de uma apreensão singular destes ambientes proletários, em que os habitantes lidam com problemas como transporte precário, baixos salários, desemprego e amarguras múltiplas. E ele o faz na ligação entre seus dois protagonistas de uma maneira muito envolvente, que aborda temas como a depressão sem excessos de melodrama, inserindo brechas de humor com muita propriedade, o que empresta ao filme uma empatia irresistível.

Curtas
A noite de segunda trouxe curtas de empenho de linguagem, como o potiguar Navio, dirigido por três mulheres: Alice Carvalho (a atriz da série Cangaço Novo, revelando uma nova faceta), Larinha Dantas e Vitória Real, que traça a trajetória de uma catadora de recicláveis que encontra dimensões mágicas a partir de seu encontro com Exu mirim, num resgate da riqueza do imaginário das religiões africanas; e A Edição do Nordeste, de Pedro Fiúza (RN), uma interessante discussão sobre a mitologia criada em torno da região a partir de um sofisticado trabalho de montagem de diversos materiais, inclusive cenas de muitos filmes, como O Pagador de Promessas, de Anselmo
Duarte, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.