O Brasil voltou à Croisette
- Por Neusa Barbosa, de Cannes
- 12/05/2024
- Tempo de leitura 11 minutos
Num ano em que o Festival de Cannes selecionou um número inédito de filmes brasileiros concorrendo - cinco, dois na competição, um na Quinzena dos Realizadores e dois na Semana da Crítica -, 2024 parece promissor como nunca para o cinema nacional. Além das homenagens e representação em júri.
Na competição principal, que vale Palma de Ouro, estão no páreo o longa Motel Destino, de Karim Aïnouz (foto ao lado) - que concorreu no ano passado com uma produção internacional, Firebrand -, e também um curta, Amarela, de André Ayato Saito.
Motel Destino é o oitavo longa de ficção de Aïnouz, um thriller erótico filmado inteiramente no Ceará, que tem no elenco Iago Xavier, Nataly Rocha – selecionados por teste entre mais de 500 atores –, Fabio Assunção, Renan Capivara, Yuri Yamamoto, Fabíola Líper, Isabela Catão e Jupyra Carvalho. Em 2023, o diretor cearense participou da competição em Cannes com a produção britânica Firebrand, um drama de época estrelado por Jude Law e Alicia Vikander.
“É sempre muito emocionante ter um filme selecionado para o Festival de Cannes. Embora seja a minha sexta vez aqui, parece a primeira. Foi lá que estreei com Madame Satã, há mais de 20 anos, exibi na Quinzena dos Realizadores Abismo Prateado e fui premiado com A Vida Invisível na mostra Un Certain Regard. Foi no festival que dividi com o grande público Marinheiro das Montanhas, um filme tão pessoal sobre a história dos meus pais, e também Firebrand”, celebra o diretor.
Curta
O enredo de Amarela acompanha as peripécias de Érica Oguihara, uma adolescente nipo-brasileira que rejeita as tradições familiares e vivencia uma violência aparentemente invisível, o que desencadeia inúmeras emoções.
O diretor, de 39 anos, formou-se em Comunicação Social e estudou cinema em Buenos Aires. Tem a seu crédito os curtas Tomás Tristonho (2012), Luz (2017), In Silence (2021) e Kokoro to Kokoro (2022), foi premiado nos festivais de curtas de Roma e Tóquio. Também desenvolve seu primeiro longa de ficção, Crisântemo Amarelo, selecionado para laboratórios de roteiro brasileiros e internacionais. Outro curta, Vento Dourado, será apresentado no 46º Festival Internacional de Moscou.
Seções paralelas
Outros três realizadores brasileiros foram selecionados para as seções paralelas do festival, que também são competitivas.
Na Semana da Crítica, os representantes nacionais são Marcelo Caetano, com o longa Baby, e Valentina Homem, com o curta A menina e o pote.
Baby (foto ao lado) é o segundo longa do diretor Marcelo Caetano, que estreou seu primeiro filme, Corpo Elétrico (2017), no Festival de Roterdã. O novo filme é mais um projeto de Marcelo rodado no centro de São Paulo. No enredo, logo após ser liberado de um Centro de Detenção para jovens, Wellington (João Pedro Mariano) se vê à deriva nas ruas de São Paulo. Durante uma visita a um cinema pornô, ele conhece Ronaldo (Ricardo Teodoro), um garoto de programa, que lhe ensina novas formas de sobreviver. Aos poucos, a relação dos dois se transforma em uma paixão cheia de conflitos e ambiguidades.
Já o curta A menina e o pote é uma animação, falada em nheengatu (idioma indígena), retratando uma fábula em que uma menina quebra um vaso, evento que dá ensejo ao acesso a um mundo paralelo e à oportunidade de criação de um novo mundo.
O curta parte de um conto escrito pela própria cineasta em 2012, uma parábola que nasceu de uma tentativa de traduzir experiências do início da vida adulta. Para transformar a ideia em filme, Valentina contou com a consultoria da antropóloga indígena Francy Baniwa, e o roteiro, além delas duas, teve a colaboração, também, de Nara Normande, Tati Bond e Eva Randolph. O filme utiliza a técnica de pintura sobre vidro, que reflete a jornada da Menina, que está em constante transformação, materializada na fluidez, fusão e perda de contornos da animação.
A história foi construída com referências à cosmologia Baniwa e também algumas influências da mitologia Yanomami, conforme descrito no livro de Davi Kopenawa Yanomami, "A Queda do Céu".
O mesmo livro de Kopenawa foi a fonte de inspiração de Queda do Céu, documentário de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, que representa o Brasil na Quinzena dos Realizadores. Trata-se de uma coprodução Brasil-Itália-França, da Hutukara Associação Yanomami e Stemal Entertainment com Rai Cinema e produção associada de Les Films d'ici, que adapta o livro homônimo de Davi Kopenawa, xamã Yanomami e um dos maiores líderes indígenas do mundo, e de Bruce Albert, antropólogo francês.
Eryk Rocha já tem uma sólida trajetória em Cannes. Em 2004, o cineasta disputou a Palma de Ouro de melhor curta-metragem por Quimera. Em 2016, recebeu o L'Œil d'or (Olho de Ouro) de melhor documentário no Festival de Cannes por Cinema Novo, seu sétimo longa.
Homenagem e júri
Fora os filmes em disputa de prêmios, o Brasil tem duas outras entradas importantes nesta edição do festival. Completando seu vigésimo aniversário neste ano, a seção Cannes Classics do festival francês homenageia a produtora brasileira Lucy Barreto, de 91 anos, numa sessão especial da versão restaurada de Bye Bye Brasil (1970), de Cacá Diegues.
A cineasta brasileira Juliana Rojas (As Boas Maneiras, Cidade; Campo), por sua vez, integra o júri que, em Cannes, concede a Palma Queer - compreendendo filmes de todas as seções que abordem temáticas LGBTQIA+. Este júri é presidido pelo cineasta belga Lukas Dhont, vencedor deste prêmio há seis anos com Girl - O Florescer de uma Garota, que levou também o prêmio Fipresci e o Caméra d’Or.
Completam este júri a atriz e diretora francesa Sophie Letourneur, o ator, diretor e drag queen francesa Hugo Bardin (Paloma) e o jornalista britânico-palestino Jad Salfiti.
Uma competição acirrada
A competição de longas pela Palma de Ouro, aliás, está mais do que disputada. Chama a atenção a presença de um peso-pesado como o veteraníssimo Francis Ford Coppola que, do alto de seus 85 anos e com duas Palmas de Ouro nas costas (A Conversação, em 1974, e Apocalypse Now, em 1979), comparece para mostrar a ficção científica Megalopolis - um filme sobre o tempo e o poder com o qual ele sonhava há muito e tem um elenco estelar, integrado por Adam Driver, Dustin Hoffman, Laurence Fishburne, Talia Shire, Giancarlo Esposito e muitos outros.
No time dos veteranos, outro octogenário, o canadense David Cronenberg, 81 anos, retorna a Cannes com The Shrouds - uma trama mais uma vez futurista e macabra, que permite que as pessoas acompanhem a decomposição de seus entes queridos em seus túmulos por meio de um recurso high tech. No elenco, Vincent Cassel, Diane Kruger e Guy Pearce.
Provando que não dá força mesmo ao etarismo, Cannes escalou também o norte-americano Paul Schrader, 77 anos, trazendo Oh, Canada, que retrata as últimas confissões de um famoso documentarista a um de seus alunos - com elenco integrado por Richard Gere e Uma Thurman -, e o francês Jacques Audiard, 72, apresentando Emilia Perez, uma comédia policial de tempero latino, estrelada por Selena Gomez, Zoe Saldaña e Édgar Ramírez.
Mais jovens, vários dos demais competidores têm muita estrada. Caso do grego Yorgos Lanthimos, que se une novamente à sua estrela Emma Stone, sua parceira em A Favorita e Pobres Criaturas, para a nova empreitada, Kinds of Kindness (Tipos de Gentileza), que entrelaça três histórias com seu habitual toque bizarro.
Outro que está de volta à Croisette é o chinês Jia Zhang-ke, trazendo Caught by the Tides, um filme que se desenvolve nas duas primeiras décadas do século XXI, em torno da trajetória de uma mulher (Zhao Tao, a esposa e atriz-fetiche do diretor).
Também em torno de uma mulher gira Parthenope, do diretor italiano Paolo Sorrentino, que explora aspectos de lenda e realidade em torno da fundação de Nápoles. No elenco, Isabella Ferrari, Stefania Sandrelli e Gary Oldman.
O português Miguel Gomes mais uma vez faz sua graça irônica em Grand Tour, que acompanha Edward (Gonçalo Waddington), um noivo que foge da noiva Molly (Crista Alfaiate) no dia do casamento em Rangoon, em 1917. Mas Molly não desiste e o segue por toda a Ásia.
O russo Kirill Serebrennikov explora a cinebiografia romantizada de Eduard Limonov, um poeta e dissidente de seu país, em Limonov - The Ballad, estrelado por Ben Wishaw e Sandrine Bonnaire.
Mais secreto é The Seeds of the Sacred Fig, o novo filme do iraniano Mohammad Rasoulof sobre o qual não se conhecem detalhes do argumento. O diretor, vencedor do Urso de Ouro em Berlim com Não Há Mal Algum, foi condenado a 8 anos de prisão, chibatadas, uma multa e confisco de propriedade. A novidade desta segunda-feira (13) é que ele conseguiu fugir do Irã e foi para Europa. E o dinamarquês de origem iraniana, Ali Abbasi, compete à Palma com The Apprentice - inspirado em ninguém menos do que Donald Trump, aqui interpretado por Sebastian Stan.
Quarteto feminino
Bem longe de uma idealizada paridade, apenas quatro mulheres concorrem à Palma de Ouro, constituindo um time ultravariado. Dele faz parte a inglesa Andrea Arnold, que acumula três Prêmios do Júri em Cannes: Aquário (2006), Marcas da Vida (2009) e Docinho da América (2016), e agora compete com Bird - um drama sobre um núcleo familiar masculino, com elenco integrado por Barry Keoghan, Frank Rogowski e Nykiya Adams.
No páreo, está também a estreante em longas, a francesa Agathe Riedinger, com Diamant Brut, sobre uma jovem de 19 anos que sonha com o estrelato e entra num reality show em busca de fama.
Ao seu lado, a cineasta indiana Payal Kapadia, vencedora do Olho de Ouro em Cannes em 2021 por Uma Noite sem Saber Nada, retorna agora com All We Imagine as Light, uma história de mulheres em torno de uma enfermeira e sua amiga.
A última é outra francesa, Coralie Fargeat, competindo com o drama de terror The Substance, que tem no elenco Margaret Qualley, Dennis Quaid e Demi Moore.
Vamos ver o que acha disso tudo a atriz e diretora norte-americana Greta Gerwig, a presidenta do júri que este ano concederá a Palma.
Un Certain Regard
Nesta importante seção paralela, o investimento este ano é nos novos nomes - nada menos do que seis primeiros filmes integram a programação, incluindo a atriz grega Ariane Labed, vista em filmes como O Lagosta (2015) e A Odisseia de Alice (2016), e que aqui apresenta seu longa September Says - um drama com um toque surreal, como seria de se esperar da mulher e parceira de Yorgos Lanthimos em tantos dos filmes dele.
Fora da competição, não faltam atrações que provocarão filas e confusão, como o novo capítulo da franquia Furiosa - Uma Saga Mad Max,
e um dos três episódios da minissérie Horizon - An American Saga, marcando a volta do astro Kevin Costner ao faroeste épico.
E as homenagens com a Palma de Ouro honorária, no início, à atriz Meryl Streep, e, no fim, ao diretor e produtor George Lucas, mostram que Cannes quer andar de mãos dadas com a mais nobre realeza de Hollywood. Não podia estar mais bem representada.
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