07/11/2024

Um giro pelo mundo  através do cinema

Manas

Vencedor do prêmio de melhor direção da seção Jornada dos Autores, em Veneza 2024, Manas marca a estreia na ficção da documentarista pernambucana Marianna Brennand.
Pesquisado ao longo de 8 anos, o filme aborda um tema tão duro quanto necessário: o abuso sexual infantil, tanto dentro da família quanto fora dela. No caso da história, ambientada na ilha do Marajó (PA), uma exploração sexual que ocorre dentro das balsas que circulam pelo rio Tajipuru, e se tornam um meio excuso de sobrevivência num lugar marcado pelo isolamento geográfico e pela pobreza.
A protagonista é a estreante Jamilli Corrêa, uma adolescente que tinha 13 anos na época da filmagem, e interpreta Tiellli, a menina mais velha de um grupo de irmãos e que sofre assédio do pai (Rômulo Braga). Dira Paes interpreta Aretha, a policial que representa a intervenção do Estado numa situação que não se limita a essa menina, sendo crônica e, infelizmente, não limitada àquela região do Brasil - um drama universal que repercutiu também junto ao público veneziano.

Fotografado por Pierre de Kerchove, o filme é muito eficiente em retratar a imensidão desse rio, que representa ao mesmo tempo a riqueza da natureza e o fator determinante desse isolamento - que finalmente, aprisiona também a mãe da família (Fátima Macedo), ela mesma no passado vítima desse mesmo círculo vicioso de abuso feminino. É importante a escolha de humanizar, acrescentando nuances, mesmo a personagens evidentemente negativos, como o do pai, contextualizando a ignorância e o machismo sem desculpá-lo. Muito pelo contrário. Manas é um filme que se acompanha com o coração na boca, sentindo e sofrendo por sua pequena protagonista tendo que tão cedo lidar por si mesma com questões tão avassaladoras num contexto em que não há apoio nem mesma da igreja evangélica que frequenta - onde a palavra de ordem é manter as famílias unidas a qualquer custo, sem dar escuta a dramas gritantes como o abuso infantil. (Neusa Barbosa)

RESERVA CULTURAL 2 - 25/10 - 15h45 (ÚLTIMA SESSÃO)

Fantosmia

Com pouco mais de 4 horas, Fantosmia é um filme curto para os padrões do cineasta filipino Lav Diaz. O que não quer dizer que seja menos eficiente do que suas obras mais longas e famosas, como Evolução de uma família filipina (10h45) ou Canção para um doloroso mistério (8h05). Como de costume em sua obra, aqui o cineasta investiga como o passado nacional reflete na vida pessoal de pessoas comuns.

Não é, exatamente, necessário conhecer a história das Filipinas para compreender os filmes de Diaz, mas uma noção básica das relações de classe e políticas no país sempre ajuda a notar mais nuances e a complexidade de seus filmes. Nesse novo trabalho, o protagonista é o sargento Hilarion Zabala (Ronnie Lazaro), um militar aposentado que sofre de fantosmia, uma espécie de alucinação olfativa que o leva a “sentir” um odor putrefato o tempo todo, razão pela qual ele usa um lenço cobrindo boa parte de seu rosto.

O trauma reprimido, que causa a alucinação, vem da sua participação num massacre no final dos anos de 1960, e, mais tarde, na morte de ativistas populares enquanto era um policial. Atualmente, ele mora numa colônia penal na ilha de Pulo, onde trabalha como vigia. O local é governado pelo autoritário major Lukas (Paul Jake Paule), e na ilha também vivem Reyna (Janine Gutierrez) e sua mãe adotiva (Hazel Orencio), que explora sexualmente a moça.

Como nos filmes de Diaz, Fantosmia é sedutor. Sua narrativa não é lenta, nem hermética, pelo contrário. Seus filmes são bastante acessíveis, o que pode assustar é apenas a duração, mas,
uma vez, imersos nesse universo, pouco se sente o tempo, pois a trama flui com facilidade num jogo quase hipnótico.

As imagens, também assinadas por Diaz (assim como a produção e a montagem), valorizam a natureza exuberante (mesmo em preto e branco) da ilha, e sua relação quase claustrofóbica com os moradores.

O passado de Zabala é a questão central, seja na sua relação com os dois massacres, ou num plano pessoal, com seu filho roqueiro que só se comunica usando a guitarra ou com arroubos de ódio – quebrando o instrumento à la Sérgio Ricardo. Nesse sentido, Fantosmia é um filme sobre a terapia do protagonista – e de um país inteiro – em compreender e aceitar seu passado, para que o futuro possa ser diferente as alucinações, olfativas ou não, possam ficar para trás de uma vez. (Alysson Oliveira)

CINE SATYROS BIJOU - 25/10/24 - 19:00
CIRCUITO SPCINE OLIDO - 30/10/24 - 16:00

A Cozinha

Quarto longa do diretor mexicano Alonso Ruizpalacios, injeta uma pitada de ousadia em sua fotografia em preto-e-branco e câmera fluida, que circula freneticamente pelos corredores da imensa cozinha de The Grill, um imenso restaurante turístico de Nova York, em que o pessoal é constituído basicamente de imigrantes.

Por esse motivo, ouve-se muito espanhol, mas também inglês e até árabe, refletindo a imensa Babel de uma Nova York de bastidores, integrada por destituídos de várias geografias e ali aportam, em busca de um naco de um sonho americano que parece cada vez mais fragmentado e escasso. Também fazem parte desse tipo americanos pobres, brancos e negros, que disputam um lugar ao sol que nunca parece nascer para nenhum deles.

Conhecido por seu segundo filme, Museu, que venceu um Urso de Prata em 2018 como melhor roteiro, Ruizpalacios impregna seu filme, uma adaptação da peça de Arnold Wesker, de uma energia frenética, incessante, que se desata a partir da figura de Pedro Ruiz (Raúl Briones Carmona), um cozinheiro enamorado da garçonete Julia (Rooney Mara), ambos envolvidos com uma soma de dinheiro supostamente desaparecida do caixa e do projeto de um aborto.

Num filme coral como esse, vários outros imigrantes terão voz e vez, como num musical - mas sem música. Há muitos diálogos, falas, conflitos entre panelas fumegantes, facas, bandejas e geladeiras, numa espécie de subterrâneo onde todas as tensões pessoais e sociais se cozinham, nem sempre a fogo lento. (Neusa Barbosa)

CINESYSTEM FREI CANECA 2 - 25/10 - 15h20
ESPAÇO AUGUSTA 1 - 29/10 - 21h10

Um Homem Diferente

Sebastian Stan venceu o prêmio de melhor ator no Festival de Berlim pela atuação

neste filme de Aaron Schimberg, que envereda entre o drama e a fábula ao acompanhar a virada na vida de um homem que sofre de neurofibromatose, Edward. Com o rosto fortemente deformado e vivendo na pele, há anos, toda sorte de discriminação e sofrimento, ele tem uma oportunidade de cura ao submeter-se a um tratamento experimental.

Ao superar o problema, transformando num homem atraente, ele se joga em tudo que a vida lhe retirou, assumindo um novo nome e identidade. Mas sofre um revés com decepções a partir da atitude de sua antiga vizinha, Ingrid (Renate Reinsve), que escreveu uma peça de teatro sobre Edward. E aí surge para interpretar o papel o misterioso Oswald (Adam Pearson, ator que realmente sofre de neurofibromatose).

Evidentemente, o filme tem várias camadas, colocando em xeque discussões sobre beleza e sucesso, com um flerte para uma tensão de suspense/terror e até uma comédia de humor negro. Mas não dá conta de sustentar esse arcabouço que tentou construir, que até menciona A Bela e a Fera, com propósito irônico. A personagem feminina, Ingrid, é particularmente desconjuntada, superficial e insatisfatória. Mas o filme tem seus méritos e pode até, quem sabe, ser comparado em termos temáticos, ainda que atue numa chave enormemente mais sutil, a A Substância, de Coralie Fargeat, em cartaz nos cinemas. (Neusa Barbosa)

ESPAÇO AUGUSTA 1 - 25/10 - 20h15
CINESYSTEM FREI CANECA 2 - 27/10 - 13h30
CINEMATECA ESPAÇO PETROBRAS - 28/10 - 17h30

Levados pelas Marés

Neste filme, exibido em Cannes, o talentoso diretor chinês revisita a toda a sua obra e as preocupações nela reveladas, repassando 20 anos de história da China, mesclando sequências documentais e atuações de sua mulher e atriz-fetiche, Zhao Tao, intérprete de sua eterna heroína, Qiaoqiao, e um pequeno elenco.

É um filme lacônico, no sentido de que tem poucos diálogos, e aposta mais em sequências imagéticas que alternam texturas que traduzem cada época retratada. À medida que o tempo passa, vão incorporando mais e mais aspectos high tech - uma cena impagável envolve uma interação entre Zhao Tao e um robô falante num supermercado.

O filme começa com imagens colhidas em 2001 para retratar uma China
em busca da modernização, em que as pessoas buscam novas formas de sobrevivência e a natureza é dominada para corresponder a esse grande esforço de progresso - como a construção da imensa hidrelétrica das 3 Gargantas, referida por Jia em Em Busca da Vida (2007) e cujos deslocamentos, traumas e cicatrizes são retomados aqui. (Neusa Barbosa)

CINESYSTEM FREI CANECA 1 - 25/10 - 19h40
SATO CINEMA - 27/10 - 19h
RESERVA CULTURAL 1 - 28/10 - 14h30
CINESYSTEM FREI CANECA 3 - 29/10 - 22h

Aqui as Crianças não Brincam Juntas

Neste novo documentário, o veterano diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf debruça-se sobre o interminável conflito entre judeus e palestinos, conversando com personagens dos dois lados pelas ruas de Jerusalém.
No belo cenário de uma cidade milenar, dividida entre diversas religiões e extremamente militarizada, o diretor dá escuta a pessoas comuns, que pontuam seus desejos de convivência mútua, posicionam-se sobre as possíveis saídas e igualmente as dificuldades que a paz ocorra.
Há o velho Ali Jaddeh, um afro-palestino, como ele se define, que no passado foi membro de uma facção guerrilheira, chegou a colocar uma bomba e passou 17 anos na prisão. Depois tornou-se jornalista.Hoje é guia turístico no mercado.

Também o empresário judeu israelense Benjamin Freidenberg, cuja família vive na cidade há mais de 100 anos, reflete sobre o conflito, que lamenta. Ele mesmo conta que é criticado por falar e conviver com palestinos por seus parentes mas recusa a afastar-se dessa convivência, que a atual guerra apenas torna mais difícil.

O 7 de outubro, dia de um ataque do Hamas a Israel, que causou mortes de civis e sequestro de reféns (vários mantidos até hoje, outros mortos) é certamente um fator de agravamento das tensões, dos rancores, das suspeitas mútuas.

Makhmalbaf sobrepõe a estas entrevistas imagens de crianças em escolas,dançando, conversando sobre tudo. Mas são escolas separadas, quase que sem exceção - apenas uma delas mistura judeus e muçulmanos.

Como sempre, o diretor não é um observador distanciado. Com sua narração, ele pontua com seus próprios pensamentos sua análise do estado das coisas, tornando o trajeto pelo filme um diálogo com muitas vozes, inclusive a dele, um artista sempre engajado. (Neusa Barbosa)

INSTITUTO MOREIRA SALLES - PAULISTA - 25/10 - 17h10
ESPAÇO AUGUSTA - 30/10 - 22h30

Falando com Rios

Mohsen Makhmalbaf prova que é possível construir, com uma linguagem poética, uma reflexão história, social e política aguda, neste caso, sobre o relacionamento, as semelhanças e diferenças entre duas nações irmãs - o Afeganistão e o Irã.
Tornando-se ele próprio personagem, através de sua voz, Makhmalbaf conversa com Jawanmard Paiez, ambos tecendo comentários e reflexões sobre estas duas nações vizinhas que formavam uma só até o século 18. Separadas, tiveram histórias diferentes, marcadas por acontecimentos dramáticos que mais os separaram do que uniram.

O filme soa como um diálogo de irmãos, com tantas coisas em comuns mas em que houve decepções e mágoas profundas: como no caso do não-acolhimento solidário dos milhões de refugiados afegãos que atravessaram a fronteira iraniana, em busca de ajuda em momentos como a invasão soviética, a invasão norte-americana, a ação repressiva do governo fundamentalista do Talibã (que voltou ao poder em 2021).

Nesse formato, ainda que não seja essa a intenção maior, é possível aprender muito sobre a história do Afeganistão, país que foi e ainda é frequentemente objeto dos filmes de Makhmalbaf, caso de O Alfabeto e O Caminho para Kandahar, além de filmes de sua filhas Samira (Às Cinco da Tarde) e Hana (E Buda Desabou de Vergonha e A Lista, presente nesta 48ª Mostra). (Neusa Barbosa)

INSTITUTO MOREIRA SALLES - PAULISTA - 25/10 - 20h40
CINESYSTEM FREI CANECA 1 - 30/10 - 20h10

A Casa

Baseado na HQ homônima do espanhol Paco Roca, A Casa é um filme agridoce que se passa no logradouro do título, e acompanha uma família depois da morte do patriarca. O elemento central aqui é facilmente identificável: o que fazer com o legado e como dividir a herança?

Um grupo de irmãos se reúne durante alguns dias na casa onde passaram vários verões para discutir exatamente isso. David Verdaguer, Lorena López e Óscar de la Fuente interpretam o trio que senta para discutir o que fazer com essa casa. Cada um tem suas sugestões e sua razão. É quase óbvio o que pode acontecer, mas o diretor Álex Montoya procura uma maneira de desviar da obviedade ao construir personagens muito humanos que fogem à caricatura.

É na simplicidade que Montoya, autor do roteiro ao lado de Joana M. Ortueta, encontra a força para seu filme que vai ganhando forma aos poucos. Rivalidades do passado voltam a emergir, especialmente quando a nova geração, os netos do patriarca, também podem ser usados no campo de batalha para ataque aos inimigos.

A Casa caminha pelo drama, e, se tira comédia das situações, é porque na vida há sua comicidade, às vezes involuntária. Contando com um elenco afiado (especialmente Verdaguer), Montoya faz um filme que não tenta representar ou imitar a vida. Nele, os personagens vivem como se fossem – ou melhor, se transformam em – figuras reais. (Alysson Oliveira)

CIRCUITO SPCINE PAULO EMILIO – CCSP- 25/10/24 - 19:00