16/03/2025

Dez dicas caprichadas para a segunda semana da Mostra

Ernest Cole: Achados e Perdidos

O novo documentário de Raoul Peck - diretor de Eu Não Sou seu Negro (2016) - desvenda a figura do fotógrafo sul-africano Ernest Cole (1940-1990), um pioneiro na denúncia dos crimes do apartheid em seu país, que se tornou mundialmente famoso após a publicação de seu livro House of Bondage, em 1967, e que foi proibido de circular na época na África do Sul.
No entanto, após exilar-se para sua própria segurança nos EUA, Cole não encontrou mais o mesmo espaço, especialmente por ter voltado seu olhar para a segregação dos negros norte-americanos ainda nos anos 1960, apesar das lutas pelos direitos civis. Não lhe escaparam as óbvias semelhanças entre o regime do apartheid e a legislação segregacionista do Jim Crow.
Este olhar atento aos discriminados, além da depressão causada pelo exílio - ele queria muito, mas não podia voltar ao seu país, que tinha inclusive lhe cassado o passaporte - provocam no fotógrafo um gradativo sentimento de inadequação, embora ele nunca tenha parado de produzir, viajando também pela Inglaterra, Dinamarca e Suécia.

O documentário resgata muitas dessas fotos feitas por Cole e também por fotógrafos que o conheceram, alguns depondo no filme. Recorre também a uma entrevista filmada com ele para compor o perfil de um artista militante cuja vida foi tragicamente encurtada pelas circunstâncias desfavoráveis que o cercaram.

Mas, anos após sua morte, veio a surpresa: em 2017, um banco sueco entrou em contato com a família de Cole para entregar-lhe cerca de 60.000 negativos do fotógrafo, guardados em seu cofre. Até hoje, ninguém sabe como foram parar lá. E ainda restam, em poder de uma fundação sueca. cerca de 500 fotos de Cole, que sua família tenta resgatar para integrá-las ao seu acervo, hoje reunido na África do Sul. (Neusa Barbosa)

RESERVA CULTURAL 2
- 21h10 - 17h40
CINESYSTEM MORUMBI SALA 8 - 24/10 - 19h
ESPAÇO AUGUSTA SALA 1 - 27/10 - 16h
CINESYSTEM FREI CANECA 2 - 30/10 - 21h30

Henry Fonda para Presidente

Estreante na direção, o escritor, curador e pesquisador austríaco Alexander Horwath compõe um documentário bastante denso e original, relacionando os papéis interpretados no cinema pelo ator Henry Fonda (1905-1982) com a própria história dos EUA - um país, que, finalmente, foi governado por um ex-ator, Ronald Reagan.
Contando com uma pesquisa bastante minuciosa, o filme resgata as raízes da família Fonda, que veio da Holanda para os EUA ainda no século XVII. Hoje, no Iowa, há inclusive uma cidade chamada Fonda. Mas o que há de realmente interessante é a maneira como o filme relaciona a história dos ancestrais de Henry Fonda com o próprio processo de formação do país.
A partir de uma entrevista com o ator, de 1981 - da qual só se tem o áudio -, constrói-se também um perfil desse intérprete, que viveu na tela tantos tipos heróicos e homens comuns marcantes, em filmes como As Vinhas da Ira e O Homem Errado, mas que, modestamente, não achava ter respostas para nada, ainda que tivesse, ao longo da vida, tido posições bem firmes, inclusive politicamente. Durante o período do macartismo, ele afastou-se de Hollywood, voltando ao teatro, e rompeu relações com um colega que tinha denunciado outros atores por supostas ideias comunistas - mas não John Wayne, também delator no período, com quem Henry voltou a falar.

Evidentemente, não faltam participações de seus filhos, os também atores Peter e Jane Fonda, em materiais de arquivo igualmente preciosos e bem-selecionados, sendo eles bem mais declaradamente ativistas do que esse pai tão moralmente definido, porém. (Neusa Barbosa)

CINEMATECA SALA GRANDE OTELO - 21/10 - 14h
CINEMATECA SALA OSCARITO - 22/10 - 17h
CINESYSTEM FREI CANECA 3 - 29/10 - 18h40

Anora

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2024, Anora, interpretada pela atriz Mikey Madison, tem um indiscutível tempero feminista no filme dirigido pelo norte-americano Sean Baker.
Baker entrega uma personagem cheia de vida e atitude. Anora, uma neta de russos que prefere ser chamada de Ani, é uma escort girl e uma das estrelas da boate onde trabalha, em Nova York. Um dia, seu caminho se cruza com o de Ivan (Mark Eidelshteyn), um rico e inconsequente jovem herdeiro de uma família de milionários russos.
Não se sabe a origem do dinheiro dessa família, mas é notório que vem de negócios escusos. Ivan ainda não está no comando deles e vive sua vida de diversão como se não houvesse amanhã, levando Ani com ele. A moça é esperta mas se empolga com a oportunidade de subir na vida, ainda mais quando, numa de suas viagens, eles acabam se casando em Las Vegas. E o filme nem chegou à metade.

A grande sacada do diretor e roteirista é criar um turbilhão de situações brincando com as expectativas do público em relação a filmes de gênero, tornando os gângsters que fatalmente vão aparecer bem mais patéticos e menos letais do que se imagina à primeira vista, levando a pior muitas vezes da miúda mas aguerrida Ani.

Apesar da duração (2h26), o filme sustenta o ritmo e é divertido, aproveitando bem seus personagens, em que se destaca o capanga Igor (Yura Borisov), que tem na trama uma participação mais expressiva do que parece quando ele entra em cena. (Neusa Barbosa)

CINESESC - 21/10 - 20h45
CINEMATECA ESPAÇO PETROBRAS - 25/10 - 20h50
ESPAÇO AUGUSTA 1 - 29/10 - 18h40

O Banho do Diabo

Neste drama de época ambientado no século 18, as atuações, particularmente da protagonista Anja Plaschg, são um ponto alto para dar corpo a esta história chocante, inspirada em fatos reais. Agnes (Anja Plaschg) é uma jovem camponesa que se casa com um rapaz de uma aldeia longe da sua, Wolf (David Scheid). Profundamente religiosa, seu sonho é tornar-se mãe. No entanto, seu casamento é distante e o sonho permanece impossível.
Mais e mais, Agnes sente-se uma estranha na comunidade do marido, envolvida com pesca. Tudo o que se exige dela é o cumprimento de uma infinidade de tarefas exaustivas. Essa atmosfera, mais o deserto afetivo e sexual de seu casamento, concorrem para um estado psicológico em que Agnes mergulha em depressão - e se afigura uma decisão drástica para sair desta verdadeira prisão invisível.
A idéia inicial para esta história veio de um podcast de uma historiadora norte-americana sobre pessoas, em geral, mulheres, que cometiam um assassinato - em geral, as vítimas sendo crianças - para serem executadas, já que o suicídio, em seu tempo, era um dogma incontornável. Segundo a diretora Veronika Franz, na coletiva do Festival de Berlim, estima-se que houve pelo menos 400 casos como estes nos países de língua alemã entre os séculos 17 e 18. Ela, porém, acredita que o filme ressoa ainda nos dias de hoje, “porque há muitos dogmas em vigor, ainda que tenham mudado”. E a interpretação de Anja Plaschg é nunca menos do que dilacerante.

Em Berlim, o filme venceu o troféu de melhor contribuição artística. (Neusa Barbosa)

KINOPLEX ITAIM SALA 1 - 21/10 - 21h30
ESPAÇO AUGUSTA 2 - 27/10 - 13h30
RESERVA CULTURAL 2 - 28/10 - 19h10

Sol de Inverno

Este delicado segundo longa do jovem diretor japonês Hiroshi Okuyama remete ao minimalismo de um Yasujiro Ozu, ao retratar as discretas emoções e também tensões de uma pequena ilha do interior do Japão.

A vida da comunidade é movida ao sabor das estações, particularmente os esportes a que se dedicam as crianças locais. Na temporada de verão, é o beisebol. Na de inverno, o hóquei, para os meninos, a patinação artística para as meninas. Evidentemente, estes padrões de gênero, rígidos pela tradição, nem sempre são observados à risca. E o pequeno Takuya (Keitatsu Koshiyama) começa a interessar-se mais pela patinação do que pelo hóquei, em que ele é desajeitado e desatento.

O interesse de Takuya, que passa um longo tempo olhando a menina Sakura (Kiara Takanashi) em suas evoluções pela pista de gelo, não escapa ao treinador dela, Arakawa (Sosuke Ikematsu), um ex-campeão na modalidade. O treinador estimula os dois a formarem uma dupla e participarem da próxima competição.

Muito do filme se passa nessa pista de gelo, mostrando os movimentos dos pequenos mas também se dedica à ligação afetiva entre o trio, que escapa um pouco à rigidez habitual das relações entre os membros da escola.

Há um estilo muito particular, e muito japonês também, na maneira como se observa estas ligações entre o trio e se expõem os sonhos e expectativas das duas crianças em relação à patinação. Para Takuya, particularmente, um menino tímido e vítima de bullying por ser um pouco gago, a patinação é uma espécie de libertação, de expressão de um talento que ele desconhecia. Para a menina, porém, que é extremamente habilidosa e um pouco vaidosa também, as expectativas são outras - especialmente em relação ao professor, que é gay mas mantém bastante discrição sobre sua vida pessoal.

A partir desse microcosmo, o diretor consegue montar um painel de afetos e uma análise de mentalidade particularmente aguda e sutil. (Neusa Barbosa)

CINESESC - 21/10 - 17h
ESPAÇO AUGUSTA 1 - 26/10 - 21h40

Oito Cartões Postais da Utopia

Exibido no Festival de Locarno, o documentário dirigido em parceria entre o premiado cineasta Radu Jude e o filósofo Christian Ferencz-Flatz disseca as imagens de propagandas da Romênia pós-socialista para compor uma análise ao mesmo tempo profunda e cínica dos mitos criados e propagados nessa transição do socialismo ao capitalismo, que naquele país foi tão brusca e radical.

O filme é dividido em oito segmentos, que localizam o estímulo à acumulação de capital, a aquisição de bens e produtos, a procura da beleza, os valores ligados ao sexo e aos papéis de gênero, não deixando de evidenciar o mau-gosto na composição de diversos desses anúncios televisivos, não raro de maneira corrosiva, como é habitual na obra de Jude, diretor de filmes como Não Espere Muito do Fim do Mundo (2023) e Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, este vencedor do Urso de Ouro em Berlim 2021. O filósofo romeno, por sua vez, está estreando no cinema. (Neusa Barbosa)

ESPAÇO AUGUSTA 2 - 21/10 - 19h20
CINEMATECA ESPAÇO PETROBRAS - 24/10 - 14h
CINESYSTEM FREI CANECA 2 - 28/10 - 19h50

O Brutalista

Nas extensas 3 horas e meia de seu filme, o ator e diretor norte-americano Brady Corbet cria uma cinebiografia um tanto caótica para um personagem inventado, o arquiteto húngaro Lazlo Toth (Adrien Brody). Sobrevivente de um campo de concentração, ele consegue asilo nos EUA, recorrendo à ajuda inicial de um primo (Alessandro Nivola). Mas logo lhe ocorrem inúmeras dificuldades, que aparentemente serão solucionadas quando ele cai nas graças de um temperamental milionário, Harrison Von Buren (Guy Pearce).

Muito falta para que Lazlo, um ex-professor na Bauhaus de Dessau, possa realizar seus sonhos mais caros: como resgatar a mulher (Felicity Jones) e a sobrinha (Raffey Cassidy), ainda refugiadas na Europa do pós-guerra. A associação com Von Buren lhe dá a oportunidade de construir um ambicioso centro cultural, em que ele poderá exercitar seu talento, mas que se torna um verdadeiro pesadelo, devido à instabilidade e aos abusos do patrocinador e às próprias inseguranças de Lazlo. A vida nos EUA é tudo, menos a realização do mítico sonho americano.

Filmado em 70 mm, O Brutalista, que venceu o prêmio de melhor direção no mais recente Festival de Veneza tem ambição mas falha na maneira como estende, em suas duas partes, os altos e baixos de um personagem trágico, perdendo de vista a organicidade da narrativa, especialmente em seu segmento final. (Neusa Barbosa)

Bogancloch

O documentário constitui uma experiência cinematográfica bastante particular. Dirigido pelo inglês Ben Rivers, o filme é uma sequência de seu curta This is my land, de 2006, e do longa Two years at the sea, de 2011, e, novamente, acompanha Jake Williams em uma jornada de solidão e autocompreensão que apenas o isolamento na floresta na Escócia é capaz de proporcionar.
Com uma bela fotografia em 16mm preto e branco, assinada pelo próprio diretor, o documentário abre mão de diálogos - na verdade, dispensa praticamente as palavras. A maioria das que aparecem no filme são cantadas de forma bastante marcante por um coral. Rompendo com as fronteiras entre a documentação e a encenação, Rivers permite que Williams exista na frente da câmera que, não poucas vezes, se mantém distante.
Magro e com uma gigantesca barba branca, Williams é quase uma figura mítica em sua relação com a natureza, sua verdadeira companheira. A narrativa lenta e o olhar para o redor, criando texturas e beleza e poesia visual, são a marca do filme que, de certa forma, remete ao italiano Michelangelo Framartino.

O preto e branco, por sua vez, remete a um cinema – assim como na vida de Williams – que vai ao cerne de sua essência. Fotografias antigas, que aparecem de vez em quando, saturadas em suas cores ou totalmente esmaecidas, dão conta de que o protagonista foi um marinheiro. No presente, algumas pessoas cruzam seu caminho, como andarilhos, cantores de música folk, ou quando ele vai a uma escola ensinar crianças sobre o sistema solar.

Rivers e Williams fazem um convite a um mundo próprio, onde as coisas acontecem numa velocidade particular, distantes das narrativas desenfreadas que o século XXI demanda. Bogancloch parece perdido no passado, num tempo ancestral que nos indaga sobre o mundo em que estávamos vivendo e o que vamos deixar para as próximas gerações. Uma pequena obra-prima. (Alysson Oliveira)

KINOPLEX ITAIM SALA 1- 21/10 - 17:40
CIRCUITO SPCINE LIMA BARRETO – CCSP - 22/10 - 15:00
CINESYSTEM FREI CANECA 3 - 26/10 - 20:40
INSTITUTO MOREIRA SALLES – PAULISTA - 30/10 - 18:20

Centro Ilusão

O novo longa de Pedro Diógenes, estabelece um diálogo interessante com seu filme anterior, A filha do palhaço. Ambos indagam sobre o poder e a função pessoal e social da arte no mundo contemporâneo. Como é particular de seu cinema, o cineasta tem um olhar bastante humanista para seus personagens em suas jornadas muitas vezes de opressão em busca de transcender os limites sociais.
A cena musical cearense ocupa posição de destaque nesse filme, protagonizado por dois músicos de gerações diferentes, Kaio (Brunu Kunk) e Tuca (Fernando Catatau), que se conhecem num teste para um laboratório de música em Fortaleza. O que poderia ser uma rivalidade, afinal disputam o mesmo espaço, torna-se uma amizade que evidencia as diferentes visões de mundo e utopias de cada um.
Músico, e estreando como ator, Catatau tem uma respeitada carreira de quase três décadas, e parece emprestar ao seu personagem as próprias angústias como artista. O mesmo acontece com Kunk, jovem músico multi-instrumentalista que sempre trabalhou com a popularização da música feita da maneira mais acessível possível.

Desse encontro, surge Centro Ilusão em sua busca em retratar uma arte verdadeiramente popular, deselitizada, que represente a cultura cearense em sua variedade e complexidade. Diógenes, um dos diretores mais interessantes da atualidade, traz uma leveza ao filme, um olhar carinhoso e atento que eleva a simplicidade a outro patamar – aliás, algo típico de seu cinema.

O longa ganhou o principal prêmio da seção Novos Rumos do Festival do Rio de 2024. (Alysson Oliveira)

RESERVA CULTURAL - SALA 2 - 21/10 - 21:40
RESERVA CULTURAL - SALA 1 - 29/10 - 13:00

I Saw the TV Glow

O filme abre com um trecho da música Anthems for a Seventeen Year-Old Girl, do Broken Social Scene, numa gravação de yule. É uma versão estranha para uma música que, em si, já nasceu levemente estranha. A partir disso Jane Schoenbrun, que assina roteiro e direção, cria um filme de estranhamentos, que nos tira do lugar-comum ao desafiar as narrativas habituais de personagens queers e trans.

Schoenbrun lança-se o tempo todo a essa busca desafiadora e, talvez, quase impossível de, nesse momento, estabelecer essa nova forma de narrar essas experiências. Ela é uma pessoa trans também, e muito aqui deve vir de uma experiência próxima à sua de se viver uma espécie de vida dupla, a real cotidiana e a interna sonhada, que não pôde ser externalizada até certo momento.

É um filme que brilha a neon e à luz de aparelhos de televisão antigos. A jornada das duas pessoas jovens centrais no filme é a da autocompreensão diante de um mundo - especialmente dos anos de 1990 - que não faz a menor questão de compreender essas pessoas.

Nesse sentido, o filme se torna exemplar exatamente na sua construção formal de buscar a sua linguagem e sua estética. Toma algo de emprestado dos anos 1990, mas faz um pastiche consciente que ilumina o presente, com uma luz mais forte e natural do que a da televisão - a luz interior das personagens. (Alysson Oliveira)

CINEMATECA ESPAÇO PETROBRAS - 21/10 - 18:10
KINOPLEX ITAIM SALA 1-
22/10 - 21:00
CINESYSTEM FREI CANECA 2
- 26/10/24 - 13:30