Mostra encerra 48ª edição com o “Megalopolis” de Coppola, num dia de ver as últimas atrações
- Por Neusa Barbosa e Alysson Oliveira
- 30/10/2024
- Tempo de leitura 14 minutos
A Mostra encerra hoje (30) sua 48ª edição, exibindo Megalopolis, a mais recente superprodução dirigida por Francis Ford Coppola, que veio a São Paulo receber o prêmio Leon Cakoff. Na noite de encerramento, serão anunciados os prêmios do festival.
A sessão, somente para convidados, na Cinemateca Brasileira, será certamente concorrida para assistir a este filme, que teve sua première mundial no mais recente Festival de Cannes, em maio, e estreia nos cinemas brasileiros já amanhã (31).
É difícil saber o que pensar de Megalopolis, o filme que Coppola sonhava fazer há 40 anos anos e finalmente entregou, com todas as pompas em Cannes, deixando meio mundo perplexo.
Neste que pode muito bem ser um filme-testamento, há o melhor e o pior do diretor que trouxe ao mundo A Conversação, Apocalypse Now - suas duas Palmas de Ouro até aqui - e a trilogia O Poderoso Chefão.
De melhor, há a ambição de se jogar de cabeça num projeto arriscado, futurista, caro (divulga-se que o diretor gastou US$ 120 milhões do próprio bolso), com um visual arrojado, um desenho de produção que visivelmente investiu tudo para criar esse universo de uma Nova Roma, dominada pela ambiguidade de tipos como Cesar Catilina (Adam Driver), o cientista e arquiteto utópico que sonha com a construção de uma nova sociedade, o prefeito corrupto Frank Cícero (Giancarlo Esposito), que se equilibra nos mecanismos da política tradicional, e o banqueiro Hamilton Crassus III (John Voight), que tem um sobrinho, Clodio Pulcher (Shia LaBeouf) que é a mais perfeita tradução do populista fascista com um lado influencer que vem assolando vários países do mundo. Muitas referências latino-americanas virão à mente, a mais próxima delas, no momento, a do presidente argentino Javier Milei.
Ecos do passado
Mas, aos 85 anos, a memória de Coppola explora referências mais longínquas, levando-o a evocar figuras de um passado mais ou menos recente, como Adolf Hitler e Benito Mussolini. Coppola não esconde que sua ambição é fazer uma reflexão política sobre o mundo onde vivemos, seu esgotamento sócio-ambiental, sobre os pioneiros utópicos - que não raro são incompreendidos e podem também ser autoritários
- e uma gama imensa de temas.
Pode-se criticá-lo por alguns excessos e por não ter conseguido dar conta de todas as suas ambições, mas não de ter deixado de tentar com todas as suas forças. O esforço artístico de Coppola é para respeitar.
De todo modo, esse mundo que se vislumbra em Megalopolis não é propriamente uma visão de futuro, é claramente uma metáfora ácida sobre os EUA de hoje, um sucessor do Império Romano mergulhando rapidamente na decadência, ameaçado por tendências autoritárias, pela amoralidade de suas lideranças, pelo desprezo a valores humanos. Neste sentido, destaca-se a jornada que aproxima Cesar Catilina de Julia Cicero (Nathalie Emmanuel), a filha do prefeito, criando um romance que humaniza uma narrativa em que muitas vezes a empolgação pelo excesso rouba um pouco da consistência e da energia.
Outras presenças de destaque no elenco são Aubrey Plaza, como a ambiciosa jornalista e arrivista Wow Platinum, Talia Shire, como a mãe de Cesar, Constance Crassus Catilina, e Dustin Hoffman, como o duvidoso Nush Berman. Laurence Fishburne comparece igualmente como um coadjuvante de valor, Fundi Romaine, o motorista e protetor de Cesar Catilina a quem cabe a função de narrador e comentarista do vendaval de acontecimentos turbulentos que se sucedem ao longo das 2h13 do filme. Que chega às telas para causar perplexidade, revolta, admiração ou raiva, mas não deve deixar ninguém indiferente.
(Neusa Barbosa)
Kyle Stroud, entre o épico e o intimista
Participando da Mostra como membro do júri, o produtor estadunidense Kyle Sproud apresenta, também, três longas recentes de sua filmografia: O Brutalista, de Brady Corbet; Eeephus, de Carson Lund; e Harvest (foto), de Athina Rachel Tsangari. São filmes distintos que transitam entre o épico, como o primeiro deles, e o intimista, nos outros dois.
Stroud conta, em entrevista ao Cineweb, que, como produtor, procura obras que tragam uma visão ímpar do mundo e do cinema, e cita, em especial, O Brutalista, ganhador do prêmio de direção e da crítica no Festival de Veneza. “O filme é longo [são quase 3 horas e meia], mas é uma produção independente, e foi barata pelo que se vê na tela, se comparada aos padrões de Hollywood. Filmamos em pouco mais de um mês na Hungria, que também participou com isenção de impostos”.
Para fazer esse filme longo em tão pouco tempo, o produtor explica que foi necessário muito planejamento – até porque a narrativa é bastante complexa, com vários fios narrativos. Para isso, Corbet, que também assina o roteiro, tinha tudo muito organizado. “Todas as cenas do roteiro foram filmadas e utilizadas. Eu nunca tinha visto algo assim antes. Ele, como diretor, tem uma visão muito clara do que quer.”
O brutalista do título é o arquiteto László Tóth (Adrien Brody), um judeu húngaro que emigra para os EUA, fugindo do nazismo. No país, conhece um milionário (Guy Pearce), que redefinirá sua carreira, mudará sua vida e a arquitetura nos EUA. Sproud explica que, para Corbet, que tem uma vasta experiência como ator, esse é um filme sobre a autonomia da arte.
“Brady se vê no personagem, como o artista que tem de abrir mão de seus interesses porque precisa trabalhar, ganhar dinheiro para sobreviver. Não vou dizer nomes, mas, no filme, o empresário mesquinho e manipulador também é inspirado em vários diretores com quem ele trabalhou.”
Depois da bem-sucedida estreia em Veneza, o longa começa uma campanha para o Oscar, tendo tudo para ganhar indicações em várias categorias – em especial filme, direção, fotografia e ator, para Brody. “Brady já está participando de eventos por todo o país. Já estão acontecendo sessões especiais nos EUA. E a A24 [distribuidora do longa nos EUA], já começou uma campanaha”.
Se O Brutalista é gigante em sua ambição e duração, na Mostra Sproud apresenta uma comédia dramática mais intimista e divertida, nem por isso, superficial: Eephus. O título inspira-se num lance do beisebol que, como o esporte, serve de metáfora para a vida.
Um grupo de amigos de meia-idade se reúne numa tarde para jogar no seu campinho favorito que será demolido. O longa, dirigido por Carson Lund, acompanha essas horas de despedida, nas quais os personagens falam de suas vidas, suas alegrias e ansiedades.
O filme é produzido pelo coletivo Omnes Films, formado por um grupo de cineastas independentes que trabalham uns nos filmes dos outros em diversas funções. Lund, por exemplo, é diretor de fotografia em Véspera de Natal em Miller’s Point, também exibido na Mostra.
“É um grupo de profissionais muito apaixonado por cinema, que fez os filmes com orçamentos minúsculos, mas conseguem excelentes resultados. É muito gratificante trabalhar com eles, pela visão que têm do cinema como arte coletiva, e pelo resultado. Eephus é um filme que me lembra muito os trabalhos de Robert Altman e Richard Linklater, por exemplo”, conclui Sproud.
O Brutalista será lançado no Brasil em fevereiro. (Alysson Oliveira)
Harvest
RESERVA CULTURAL - SALA 2 - 30/10/24 - 21:10
Maldoror
Como seu protagonista, Maldoror tem uma força desgovernada que impressiona. Imperfeito, o filme pode lidar com motivos pouco originais, mas a inegável presença assombrosa de Anthony Bajon, no papel central, dá lastro ao filme que, certamente, dividirá opiniões.
Bajon é Paul Chartier, jovem policial horrorizado com uma série de crimes envolvendo meninas estupradas e assassinadas. Partindo desse elemento real, que aconteceu na Bélgica nos anos de 1990, o diretor Fabrice du Welz faz novamente um exemplar de seu cinema de violência extrema e comentário social.
Repleto de boas intenções e de pavio curto, Chartier é um jovem idealista que se propõe a encontrar o assassino e impedir novos crimes. Não é uma tarefa simples, inclusive pela burocracia que envolvia a polícia belga na época, dividida em três forças, como explicam os letreiros iniciais. A rivalidade e tensão entre eles levou a um sistema marcado pela corrupção. O protagonista está sempre batendo de frente contra esse sistema, mas é uma luta vã do exército de um homem só.
Consumido pelo desaparecimento de duas meninas, Chartier se envolve num grupo de investigação extraoficial chamado Maldoror. Não é apenas senso de justiça ou idealismo que move o rapaz. Seu passado é marcado por um pai criminoso e uma mãe alcoólatra (Beatrice Dalle), o que o levou a engajar-se na polícia. Quando ele entra para uma família tipicamente italiana, ao casar-se com Gina (Alba Gaia Bellugi), sua vida parece entrar nos eixos – mas não é o que acontece.
Du Metz, que assina o roteiro com Domenico La Porta, traz para seu protagonista um dilema moral que o aliena cada vez mais de sua própria família, tornando-o irreconhecível. Ele tem certeza de que o caso está ligado a algo muito maior envolvendo uma rede de pedofilia internacional.
Bajon – premiado em Berlim em 2018 por A Prece – mostra-se um dos melhores de sua geração. Sua construção de Chartier introduz complexidade e nuances num personagem atormentado que poderia, facilmente, cair no clichê. Aqui, ele traz à tona todo o desespero e a força moral que conduzem o protagonista, que se coloca como único capaz de salvar as vítimas do assassino em série. (Alysson Oliveira)
CINESYSTEM FREI CANECA 5 - 30/10/24 - 15:50
A Savana e a Montanha
O pequeno vilarejo de Covas do Barroso, no norte de Portugal, é o cenário deste delicado filme, que combina documentário e encenação para contar uma luta de Davi contra Golias. O local é alvo da empresa britânica Savannah Resources que pretende construir ali a maior mina de lítio a céu aberto da Europa para baterias de carros.
Dirigido por Paulo Carneiro, o longa acompanha essa luta, retratando a força do coletivo enquanto os moradores locais interpretam versões de si mesmos nessa batalha, marcada por tradições locais e canções de protesto.
Em entrevista, Carneiro conta que descobriu a história ao filmar na aldeia ao lado, onde seu pai nasceu. Ficou tocado pela batalha contra a empresa gigante e começou a fazer vídeos publicados na internet com o intuito de ajudar os moradores de Covas do Barroso. “Eram vídeos com as músicas deles, e eu não imaginava que poderia nascer dali um longa”.
A Savana e a Montanha, que fez sua estreia na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes deste ano, junta elementos do western clássico para contar a história real de pessoas simples. “Eu queria combinar elementos do cinema com a trajetória dessa aldeia e seu risco de ser destruída. É, como, também, a trajetória do cinema, que um dia pode acabar”.
Confessando influências de cineastas como os portugueses Manoel de Oliveira e José Álvaro Morais, além do iraniano Abbas Kiarostami e o georgiano Artavazd Peleshian, Carneiro faz um filme que lembra, também, o italiano Michelangelo Frammartino em seu retrato do ritmo da vida, das estações do ano e da relação entre humanos e a natureza.
A montadora uruguaia Magdalena Schinca conta que, desde que recebeu o primeiro material das filmagens percebeu que esse era um filme de observação do lugar e da passagem do tempo. “Montamos uma linha principal da narrativa, e fomos trazendo novos elementos para a completar.” Carneiro explica que foi diversas vezes à aldeia filmar coisas específicas para complementar o filme.O processo envolvendo a população de lá e a Savannah Resources está parado na justiça portuguesa até 2027. Depois disso, não se sabe como será a vida dessas pessoas acostumadas a trabalhar na lavoura. Carneiro levou boa parte delas a Cannes, onde viram o filme pela primeira vez. Depois, promoveu uma sessão ao ar livre na aldeia. “Eram mais de 1.500 pessoas. Veio gente de toda a região para ver o filme, e foi lindo. Nunca vi uma sessão de cinema tão lotada e tão emocionante.”(Alysson Oliveira)
CINESYSTEM FREI CANECA 4 - 30/10/24 - 13:00
Luz Fantasma
As muitas coincidências e conveniências da trama não diminuem o poder de sedução do delicado drama dirigido pelo casal Kelly O'Sullivan e Alex Thompson. O filme aborda o poder sedutor da arte em sua capacidade de catarse e ajuda para lidar com as perdas.
Dan Mueller (Keith Kupferer) trabalha em construção, e passa o dia fazendo buracos em concreto. Seu casamento anda abalado por uma tragédia que é revelada aos poucos. Sua mulher, Sharon (Tara Mallen),e sua filha adolescente, Daisy (Katherine Mallen Kupferer) parecem estar se afastando cada vez mais dele. A família rui delicadamente.
Os membros da família passam por terapia, que não parece estar ajudando muito também, até que algo inesperado acontece na vida de Dan. Ele é convidado a participar de uma produção amadora de Romeu e Julieta, feita por atores não profissionais num pequeno teatro comunitário. O fato de Dan desconhecer a trama da peça é um pouco improvável, mas fundamental para o desenvolvimento do filme.
Esse elemento, aliás, rende uma das melhores cenas do longa. Curioso sobre a peça, pergunta a Daisy se a conhece, e a menina, empolgada, declama todo o prólogo de cor, e completa: “Tem um filme bem bom, mas é um pouco velho”. Na cena seguinte, assistem ao longa no computador dela. O filme que ela chama de velho não é, simplesmente, a versão de Baz Luhrman, de 1996, com Leonardo DiCaprio e Claire Danes.
Daisy, rebelde na escola, também sonha em ser atriz, e é quem descobre, depois de o seguir, com o que o pai está envolvido. Ela acredita que ele tem uma amante, mas, quando a verdade vem à tona, ela se empolga e acaba também entrando para o grupo.
Dan, ao contrário de Kupferer não é um excelente ator, mas acaba descobrindo os caminhos da profissão, e encontra, no pessoal do teatro, novos amigos com quem, finalmente, consegue se abrir, o que permitirá sua jornada para poder lidar com sua dor. Sem querer revelar muito, mas a perda dele, coincidentemente, tem a ver com Romeu e Julieta.
O grupo de teatro traz também alguns elementos cômicos e dramáticos – como a presença da excelente Dolly De Leon, como Rita, uma atriz que tentou a sorte na Broadway, e acabou voltando para sua cidadezinha onde tem a chance de fazer a personagem dos seus sonhos, Julieta, embora um primeiro ator fazendo Romeu, reclame que ela seja velha demais para a personagem.
O'Sullivan e Thompson dirigem com delicadeza e precisão, especialmente na condução das personagens, o que faz com que qualquer exagero do filme deva ser relevado. O trio central – que são marido, mulher e filha na vida real – é excelente na construção do arco dessas pessoas sofridas, que encontram em Shakespeare o bálsamo para seguir em frente. (Alysson Oliveira)
CINESYSTEM FREI CANECA 4 - 30/10/24 - 21:45
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