12/02/2025

Gramado decola debatendo mulheres livres e a memória das cidades e cinemas


Gramado – O primeiro dia da competição em Gramado apresentou alguns dos novos caminhos trilhados pelo cinema brasileiro em plena reconstrução. A começar pelo documentário Retratos Fantasmas, de Kléber Mendonça Filho, que, exibido hors concours, despertou muitas discussões em torno de memória, percursos pessoais, destruição implacável de paisagens urbanas e dos cinemas que pautaram as vidas de muitas pessoas, não só dos cineastas – no caso, focalizando a cidade natal de Kléber, Recife.


Equipe do filme "Retratos Fantasmas" - Da esquerda para a direita: Rubens Santos (ator), Émilie Lesclaux (produtora), Kléber Mendonça Filho (diretor), Mateus Farias (montador) e Felipe Lopes (distribuidor)

A referência a fantasmas no título é mais do que adequada para ilustrar a efemeridade dos percursos pessoais de cada pessoa, desde a transformação das casas, dos bairros, nessa permanente reconstrução urbana de tantas metrópoles como Recife, que passa, há décadas, por um violento processo de verticalização. Kléber Mendonça situa, dentro da cidade, o próprio apartamento onde cresceu, no bairro de Setúbal, e que foi muitas vezes o cenário de seus filmes, desde os curtas-metragens até os longas, entrando no todo ou em parte em O Som ao Redor, por exemplo.

Mais interessante ainda é a maneira como o cineasta pernambucano insere em sua narrativa pessoal a história dos cinemas de rua de sua cidade, como o São Luiz (única sala que ainda sobrevive hoje, graças ao poder público estadual), o Art Palácio, o Veneza, o Moderno e outros, alguns definitivamente fechados, outros transformando-se em igrejas evangélicas.

De uma maneira insólita, o diretor fecha seu filme com um segmento ficcional, em que ele próprio interpreta o passageiro de um uber, dirigido por um motorista (Rubens Santos), traduzindo uma situação que não dispensa um toque fantástico e um humor cínico. Não poderia terminar melhor. O filme terá diversas pré-estreias nos próximos dias, estreando em circuito nacional no dia 24 de agosto. Também está prevista sua exibição nos festivais de Toronto e Nova York.


Mulheres livres
Primeiro longa da competição em Gramado, o drama Ângela, de Hugo Prata, tem o mérito de resgatar a história de Ângela Diniz (interpretada com muita entrega por Ísis Valverde), cujo assassinato, no réveillon de 1976, tornou-se o mote de uma feroz discussão em torno da legítima defesa da honra, tese absurda levantada no tribunal pela defesa de seu assassino, Raul “Doca” Street (Gabriel Braga Nunes), e que apenas agora, em 2023, foi definitivamente aposentada pelo STF (pois ainda invocada em alguns julgamentos de feminicídios país afora).

Hugo Prata, diretor, e Ísis Valverde, protagonista do filme "Ângela"

Contemporânea da atriz Leila Diniz – com quem compartilhava, por acaso, o sobrenome -, Ângela era uma mulher mineira, rica, bela, jovem e livre, que teve a coragem de romper um casamento precoce e tóxico, o que não era comum em sua época. Mas, para obter o desquite, viu-se forçada a abrir mão da guarda de seus três filhos, o que era um dos dramas de sua vida. Assistindo ao filme, fica muito evidente o quanto restam ainda, e provavelmente para sempre restarão, lacunas na história dessa mulher, assassinada aos 32 anos, depois de quatro tumultuados meses de relacionamento com Doca Street.

O roteiro, assinado por Duda de Almeida, baseia-se em depoimentos de amigos e conhecidos da personagem, além da cobertura jornalística do caso, mas, como admitiu o próprio diretor, no debate do filme em Gramado, constrói uma interpretação do que deve ter acontecido dentro daquela casa, na praia dos Ossos, em Búzios, onde Ângela e Doca viveram os últimos tempos da vida dela e onde ocorreu o crime. A filha de Ângela, Cristiana, autorizou a filmagem da história mas ela mesma não quis dar entrevistas, segundo Hugo Prata, devido à própria dificuldade emocional de falar da mãe.

Com muitas cenas de sexo, que ilustram o teor do relacionamento entre Ângela e Doca, o filme deixa, no entanto, de colocar melhor outros aspectos da personalidade dessa mulher, tornada, à sua revelia, um ícone. De todo modo, é importante que se volte a falar dessa história.


Curtas
Uma mulher de sexualidade livre também está no centro do curta Deixa, de Mariana Jaspe (RJ), interpretada por Zezé Motta. Com quase 80 anos, a atriz brilha na pele de uma mulher que tem um caso com um homem muito mais jovem (Dan Ferreira), ao mesmo tempo que continua presa a um casamento problemático. O filme é distribuído pela Borboletas Filmes, que se especializa em produções protagonizadas por artistas negros.

Dan Ferreira (esq.), ator do curta "Deixa", Vladimir Seixas, diretor, e Rosa Peixoto, atriz do curta " Yâmi Yah-Pá"

O outro curta da noite, Yâmi Yah-Pá, de Vladimir Seixas (RJ), por sua vez, colocou em primeiro plano a identidade indígena. Estrelado pela atriz Rosa Peixoto, das etnias tukano e tariano, o filme evoca uma atmosfera e cenários de um mundo apocalíptico e devastado, em que a protagonista percorre essas paisagens elaborando um luto e procurando retomar o contato com sua comunidade original.

Fotos: Neusa Barbosa