À espera da premiação, Cine PE assiste longas sobre mazelas brasileiras
- Por Neusa Barbosa, do Recife
- 09/09/2023
- Tempo de leitura 4 minutos

Recife – O Cine PE encerrou a exibição de seus longas concorrentes com dois filmes que tematizam questões urgentes do Brasil. O documentário Chumbo, de Severino Neto (MT), resgatando as memórias de uma região quilombola, próxima à cidade de Poconé, em que a falência de uma usina de álcool, a Alcopan, deixou uma herança dúbia, ambiental e trabalhista, com denúncias de trabalho análogo à escravidão. A ficção que fechou a noite, Entrelinhas, de Guto Pasko (PR), igualmente inspira-se num caso real, trazendo na história o calvário da estudante Ana Beatriz Fortes (Gabriela Freire), presa e torturada pela ditadura militar no sombrio ano de 1970.
Equipe do filme Chumbo - Da esq. para a direita: Marcos Valentim, assistente de direção/som direto, Josiane (personagem), Edu Fernandes (curador/debatedor) e Severino Neto (diretor)
A premiação do festival será divulgada nesta noite de sábado (9).
Últimos longas
Em termos formais, Chumbo recorre a imagens em preto-e-branco nos relatos de várias mulheres que trabalharam na usina Alcopan, testemunhando condições exaustivas, exploração, atrasos e ausência de pagamentos – e muitas ainda aguardam indenizações que ou não chegaram ou foram insuficientes. A falência desta que era a principal empresa da região, atraindo diversos imigrantes de outras regiões, como o Nordeste, deixou para trás uma herança maldita de destruição ambiental, miséria e abandono – motivo pelo qual algumas trabalhadoras chegam a lamentar o fechamento da Alcopan.
No debate do filme, neste sábado, uma das personagens do filme, Josiane, explica assim este sentimento ambíguo: “Essas pessoas não tiveram outras oportunidades. Não compreendem que o que viveram foi escravidão”. O diretor do filme, por sua vez, comentou: “A contradição existe, é retratada. Não há uma resposta”.
No meio do filme, o diretor insere uma animação colorida – obra do diretor de fotografia, Marcos Maia -, que se apóia no relato de um homem – e não há depoimentos de homens no filme, o que, segundo Severino Neto, é revelado do fato de que muitos homens efetivamente abandonaram o local, onde só se vêem mulheres e crianças. Este relato, de tom literário, cria uma ruptura, um estranhamento de que o filme não se apropria, prosseguindo depois dele na mesma toada documental, baseada nos depoimentos das mulheres, tantos deles contundentes.
Na região de Chumbo, segundo Josiane, existem 28 comunidades quilombolas. Segundo ela, “é um lugar abandonado pelas autoridades. Precisamos nos colocar à vista para sermos lembrados”. A comunidade ainda não assistiu ao filme, o que deve acontecer no final do ano.
Severino Neto informou também que o projeto do filme partiu de uma pesquisa sobre trabalho escravo no Mato Grosso, estado em que ele aponta que “apesar de ser tão rico no agro, tem 20% da população passando fome. Isto é uma situação que nos aflige”.

Memórias da ditadura
Já a ficção Entrelinhas comunica-se com o filme de abertura, Ainda somos os mesmos, de Paulo Nascimento, que foi exibido hors concours, mas igualmente remetendo às recentes ditaduras sul-americanas – no caso do filme de Nascimento, mais focada no Chile, embora com personagens brasileiros.
Equipe do longa "Entrelinhas": Da esquerda para a direita, Gabriela Freire (atriz), Edu Fernandes (debatedor), Ana Beatriz Fortes (a personagem em cuja história o filme se inspira) e Andrea Kaláboa (produtora)
A força de Entrelinhas está no drama vivido por sua jovem protagonista, Ana Beatriz Fortes (Gabriela Freire), jogada num turbilhão de horrores em um dos períodos mais duros da ditadura brasileira, em 1970, no governo Médici. O filme de Pasko opta por um tom realista, com algumas sequências fortes de tortura e violência. Infelizmente, todas calcadas na realidade, como lembrado pela própria Ana Beatriz, hoje com 71 anos, ao lado da atriz que a interpreta, no debate de hoje. Gabriela, por sua vez, revelou que ter conhecido a personagem real lhe permitiu “captar sua força”.
A produção do filme teve um processo longo e cuidadoso. Segundo o diretor Guto Pasko, foram 8 meses de casting, em que passaram 2.100 atores, sendo 181 atrizes testadas só para o papel da protagonista, que é uma atriz maranhense. O roteiro, que teve vários tratamentos, passou também por um laboratório na Fundação Carolina, na Espanha, com tutores como o cineasta chileno Sebastián Claro, que é inclusive creditado como diretor-assistente. Fora isso, o filme também foi contemplado com uma residência artística do Ministério da Cultura e do Esporte da Espanha.
Fotos: Neusa Barbosa