04/12/2024
Aventura

A invenção de Hugo Cabret

Hugo vive sozinho com seu pai, fascinado por invenções e relojoaria. Quando ele morre, o menino é levado pelo tio e obrigado a passar sua vida escondido nos meandros da estação de trem de Paris, acertando seus relógios. Para viver, ele rouba comida e também peças para consertar um brinquedo deixado pelo pai. Isso o leva de encontro ao sr. Georges, que tem uma oficina de brinquedos na estação.

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Conta-se que quando os irmãos Lumière mostraram pela primeira vez, em 1895, seu filme de 50 segundos A chegada do trem na estação, o público temeu que o trem saísse da tela e o atropelasse. Em A invenção de Hugo Cabret, novo filme de Martin Scorsese, essa cena é recriada. É improvável que, nos dias de hoje, alguém se assuste com ela. Mas há outra no longa que pode causar algum susto, quando um trem descarrilado parece realmente avançar para fora da tela. Um susto causado especialmente pela qualidade do 3D e pela incrível capacidade de sedução do longa.
A invenção de Hugo Cabret é um filme infantil – o que acontece pela primeira vez na carreira de Scorsese – mas não necessariamente apenas para o público infantil. É, acima de tudo, a obra de um cineasta completamente apaixonado pelo cinema, que vê nele o combustível para sua vida. O longa venceu 5 Oscar: fotografia, efeitos visuais, direção de arte, edição de som e mixagem de som. Estreia nos formatos 3D e convencional – ambos em versões dubladas e legendadas.
Scorsese usa o máximo da tecnologia que o cinema oferece atualmente para contar uma história com ar retrô, sobre um período de quase um século atrás, os anos 1930, e falar dos primórdios do cinema – entre outras coisas. O roteiro, assinado por John Logan (O aviador), adapta o magnífico livro infantil de Brian Selznick que já era uma homenagem ao cinema não só pelo tema como por suas ilustrações. Também assinadas por Selznick, elas mais parecem um story board cinematográfico, mostrando detalhes e recortes entre planos de imagens.
Na história do pequeno Hugo (Asa Butterfield, de O menino do pijama listrado), há muito em comum com a infância do próprio Scorsese, que descobriu a paixão pelo cinema quando ainda criança. Mas também há algo que ressoa no Scorsese de hoje, que além de cineasta é um dos profissionais mais empenhados na restauração, preservação e difusão de filmes antigos. Não por acaso, o livro de Selznick tocou fundo no diretor de Taxi Driver. Com A invenção de Hugo Cabret, ele realiza um filme que, ao mesmo tempo, é a soma de tudo que fez e aponta novos caminhos, para não só o seu cinema, mas para a arte como um todo.
Há algo de Charles Dickens na trajetória do pequeno órfão que, desde a morte do pai (Jude Law), vive escondido numa grande estação de trem em Paris, onde seria criado pelo tio beberrão (Ray Winstone), que desapareceu. Para não ser descoberto e mandado para um orfanato, o garoto executa secretamente o trabalho do tio: dar corda em todos os relógios da estação todos os dias. Seu maior inimigo é o Agente (Sacha Baron Cohen), obcecado por manter a ordem no local, que, ferido na guerra, manca de uma perna e sempre circula acompanhado de um feroz doberman.
A vida de Hugo é pautada por máquinas e mecanismos. A única lembrança que o garoto guarda do pai é um boneco autômato, que foi salvo do esquecimento no porão de um museu em que ele trabalhava, antes de morrer no incêndio que destruiu o local. O menino tem certeza de que o boneco é capaz de escrever algo, uma mensagem deixada pelo seu pai. Mas, para tanto, precisa terminar o seu conserto. Faltam-lhe peças, e essas são supridas por meio de pequenos roubos da loja de brinquedos dentro da estação, de propriedade de um velho ranzinza, conhecido como Papa Georges (Ben Kingsley).
A amizade entre Hugo e a filha adotiva de Papa Georges e Mama Jeanne (Helen McCrory), Isabelle (Chloë Grace Moretz, de Deixe-me entrar), poderá ajudar não apenas o garoto a trazer o autômato de volta à vida – e assim descobrir a mensagem secreta de seu pai – como também resgatar o passado de Georges. Essa trama remeterá “A invenção de Hugo Cabret” aos primeiros tempos do cinema, quando era pura diversão, algo pueril cujo conceito de arte ainda estava sendo descoberto. Ao menos até a chegada de Georges Meliés, que soube aprimorar o invento dos irmãos Lumière, adicionando-lhe elementos de fantasia e produzindo verdadeiras obras-primas.
Um dos momentos cinematográficos mais famosos criados pelo francês é o olho da Lua atingido por um foguete. Essa imagem aparece em A invenção de Hugo Cabret e vem repleta de significados – especialmente nostalgia. Nutrindo essa sensação de sentir falta daquilo que não vivemos, Scorsese nos leva por um passeio pelos filmes antigos. Quando Hugo e Isabelle folheiam um livro de história do cinema, as figuras que eles veem se materializam na tela na forma de antigos filmes mudos.
Ao mostrar o começo do cinema, Scorsese também desmistifica a arte, mostra que tudo – desde Meliés até hoje – não passa de truques, jogos de espelhos para contar uma história. A fotografia – assinada por Robert Richardson (Ilha do medo) –, no entanto, não faz do 3D um mero artifício. O efeito serve para ampliar o campo de visão e produzir uma imersão dentro da narrativa. Poucos filmes foram capazes de usar o 3D com tanta propriedade. James Cameron em Avatar criou um novo mundo por meio de efeitos gráficos. Aqui, Scorsese e Richardson reinventam o nosso mundo real. E, não por acaso, há um clima artificial semelhante a ilustrações de livros infantis nos cenários, na direção de arte, tudo isso para remeter às criações do próprio Meliés.
Quando, numa das primeiras cenas, Hugo vê a cidade enquadrada por uma abertura no mostrador de um relógio da estação, é impossível não pensar em Scorsese, menino asmático e solitário, vendo a vida passar diante da janela de sua casa, de onde ele observava o mundo e sonhava participar da vida. O triunfo da imaginação – de Scorsese, de Meliés, de Hugo  – é o antídoto à solidão e à mesmice. Como diz o personagem de Humphrey Bogart em O Falcão Maltês (1941), esse é o material de que os sonhos são feitos.
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