Com previsão de 26 documentários, a série Cena Inquieta, com direção de Toni Venturi e curadoria da pesquisadora Silvana Garcia (EAD-USP), retrata 48 grupos e 10 artistas de grupos teatrais de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Recife, focalizando trajetórias em torno dos eixos da negritude, gênero e de comunidade.
O primeiro episódio visita dois pioneiros grupos de teatro negro da periferia de São Paulo: o Clariô, de Taboão da Serra, e o Capulanas, do Jardim São João. Começando em 1998, o Clariô inaugurou em Taboão, uma cidade-dormitório marcada pela ausência de editais e financiamento cultural, um espaço de resistência, a começar pela decisão de ali permanecer. Construindo estratégias em cima da precariedade, o grupo, que inclui Alexandre Souza (João), Naloana Lima, Naruna Costa e Washington Gabriel, entre outros, tornou-se multifunção - quem atua também escreve, ou faz cenários, canta, etc. Com uma pesquisa orientada para desvelar os temas da exclusão e invisibilidade da periferia e das populações afrodescendentes, os integrantes recolheram relatos de seus ancestrais, além de diversos encontros - como um, singular, com o escritor Marcelino Freire, que colocou toda a sua obra à disposição e de cuja parceria saiu o premiado espetáculo Hospital da Gente.
Da mesma forma, o Capulanas - que empresta seu nome do tradicional tecido com que se envolve uma criança para carregá-lo junto ao corpo -, orientou-se pela necessidade de trabalhar a violência simbólica sentida no espaço da branquitude já a partir do curso de Comunicação e Artes do Corpo da PUC-SP, que algumas de suas integrantes, como Adriana Paixão, frequentaram. Ao seu lado, Flávia Rosa, Débora Marçal, Carol Rocha Ewaci e Priscila Preta Obassi, compartilharam a necessidade de estudos para fornecer ferramentas ao trabalho cênico/dramatúrgico - por exemplo, com o historiador Salloma Salomão. Identificaram também a necessidade de lançar luzes sobre figuras como o poeta Solano Trindade - tema de seu primeiro espetáculo, Solano Trindade e suas Negras Poesias - e do ator, diretor e dramaturgo Abdias do Nascimento, o pioneiro criador do Teatro Experimental do Negro, que funcionou entre 1944 e 1968.
Uma experiência fundamental para o Capulanas foi uma viagem a Moçambique, em 2012, da qual brotou o espetáculo Sangoma - saúde às mulheres negras (2013), resgatando essa figura que tem função curativa dentro da cultura africana. Além disso, a experiência musical cresceu dentro do grupo, com o nascimento do trio Clarianas.
Contextualizando o trabalho destes grupos, a dramaturga Cidinha da Silva pontua a importância destes coletivos para “arejar a cena brasileira numa compreensão maior da ancestralidade negra”. Uma ancestralidade cujo resgate, num mundo eurocêntrico - inclusive na teoria e nos livros - é fundamental para uma redefinição da identidade da população afrodescente e da própria ressignificação social do corpo negro - especialmente o feminino, objetificado pelos signos de uma publicidade e um erotismo ainda estruturalmente racistas.
Diante da vitalidade notável destes grupos, nada mais justo do que encerrar este primeiro episódio com uma oportuna reflexão do geógrafo Milton Santos: “As periferias do mundo o transformarão”.