16/01/2025
Documentário

Rua 54

Documentário do diretor espanhol Fernando Trueba reúne alguns dos maiores expoentes do jazz latino, como Tito Puente, Bebo e Chucho Valdez, Paquito D'Rivera, Gato Barbieri e a pianista brasileira Eliane Elias.

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A comparação de Rua 54 com outro documentário sobre música latina, Buena Vista Social Club, de Wim Wenders, se bem que inevitável por ser justa, não deve servir para reduzir um filme ao outro.

Certamente, há muitos músicos veteranos e cubanos na seleta galeria de artistas latinos que integram este verdadeiro álbum cinematográfico-musical do espanhol Fernando Trueba - o diretor premiado com um Oscar de melhor filme estrangeiro por sua comédia Sedução (Belle Époque) em 1994. Um desses cubanos, o pianista Chucho Valdez, aliás, é visto num passeio sentimental pelas ruas de Havana. Mas acabam aí as semelhanças entre os dois filmes - cujo visual, sofisticado aqui, despojado em Buena Vista, e intenções são bem diferentes, embora, no final, tanto um quanto o outro contribuam enormemente para o resgate da importância dos artistas latinos no contexto mundial.

Trueba filma todos os seus músicos num estupendo estúdio de gravação da Rua 54, de Nova York - daí, a razão do nome do filme. Nesse ambiente especial, que lhe garante a esplêndida qualidade de som que alcança na película, Trueba aninha um a um os seus favoritos, cuja escolha obedeceu apenas aos seus critérios do coração, muito embora seja difícil acreditar que alguém colocará em dúvida o gosto musical do diretor.

O primeiro a entrar em cena é o conhecido saxofonista cubano Paquito D'Rivera. Logo em segundo, comparece a única mulher do time, a pianista brasileira Eliane Elias, há muito radicada em Nova York. No texto em off, Trueba apresenta Eliane como a pianista que teve formação clássica desde criança, mostrando-a num belo vestido negro, com uma câmera sensual que sobe de seus pés descalços - seu modo habitual de tocar - pelas pernas até o seu rosto, escancarando o visível prazer com que ela domina sua arte, interpretando Samba Triste, de Baden Powell.

Logo a seguir, entram em foco o espanhol Chano Dominguez, responsável por uma inusitada fusão entre a precisão do piano e o primitivismo rouco do canto flamenco, a elétrica afinidade entre os irmãos Jerry (trompete) e Andy González (contrabaixo), em cuja casa de infância no Bronx tocou um dia ninguém menos do que Dizzy Gillespie, o sóbrio classicismo do pianista Michel Camilo, a nostalgia doída do saxofonista argentino Gato Barbieri, que evoca sua saudade do cineasta Glauber Rocha e seu personagem Antonio das Mortes, além de registrar algumas das últimas imagens de Tito Puente - envolto num cenário de fundo e figurinos premonitoriamente brancos, angelicais, como que antecipando sua morte, que ocorreu em maio de 2000, poucos meses antes do lançamento do filme.

Trueba colocou seus sentimentos também nestas cores que pontuam os cenários das exibições de cada um de seus eleitos. Assim, o maestro, compositor e arranjador Chico O'Farrill (que morreu em novembro de 2001) surge no único segmento em preto-e-branco, para reencenar a atmosfera retrô dos anos 40, que foi a época áurea para este cubano de origem irlandesa que tocou nas big bands de Count Basie e Machito.

Envoltos num fundo caliente, marrom-avermelhado, Bebo e Chucho Valdez, pai e filho pianistas de mão-cheia que não se viam há cinco anos, fazem juntos um dos últimos números musicais, em que a passagem de notas e afeto um ao outro não escapam à câmera atenta de Trueba.

Belo como é, magnificamente filmado e editado sem nenhum vício dos videoclipes que viraram uma verdadeira camisa-de-força para os musicais, o filme não glamouriza seus personagens. A câmera não se desvia dos dedos cobertos de esparadrapos de Jerry González e de outras unhas gastas quase no ponto da ruptura - como as do pianista Camilo, que usa esmalte para endurecer as suas - evidenciando como é por vezes feroz o contato com os instrumentos que tocam. Detalhes que lembram que a relação amorosa que une um artista com a sua arte nunca é indolor e sem riscos.

Este filme foi exibido no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade

Cineweb-12/4/2002

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