Primeira pessoa de sua família proletária a entrar na universidade, Anne Duchesne (Annamaria Vartolomei) é uma aluna brilhante, com um futuro que parece promissor. Sua repentina gravidez, depois de um breve romance, põe tudo em risco. Ela procura desesperadamente realizar um aborto, o que era perigoso e ilegal na França de 1963. Na Filmicca.
- Por Neusa Barbosa
- 15/06/2022
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Sendo o relato da vida de uma garota de 20 e poucos anos na França do começo dos anos 1960, O Acontecimento seria, à primeira vista, um filme de época - e, no entanto, devido à súbita reversão do caso Roe vs Wade pela Suprema Corte americana, um entendimento pró-aborto em vigor desde 1973, o filme soa estranha e sinistramente atual. O direito de uma mulher ser dona do próprio corpo, do exercício do desejo ao aborto, é, ao que parece, uma questão sempre sujeita a ser questionada por caprichos políticos e religiosos de ocasião.
Na França de 1963, o aborto era um crime. Por isso, a descoberta da gravidez pela estudante universitária Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) equivale a uma tragédia. Ela não pode contar com a ajuda de médicos, amigas, pais, nem do pai da criança (Julien Frison), com quem teve um relacionamento fortuito. A grande força deste segundo filme da diretora francesa Audrey Diwan, que adapta livro autobiográfico de Annie Ernaux e venceu o Leão de Ouro em 2021, é justamente acertar o foco na imensa solidão feminina nesta situação. É como se o problema fosse só de Anne. E todas as consequências, como os riscos corridos para procurar um aborto ilegal, a tensão permanente, a incompreensão das colegas - nem sempre as outras jovens são solidárias com sua atitude livre - e, a pior de todas, ter que abandonar os estudos e seu projeto de futuro se a gravidez prosseguir. Sem esquecer a questão de classe: Anne é a primeira de sua família proletária a alcançar uma universidade, ela não pode falhar.
Centrado no rosto e no corpo dessa atriz extraordinária que é Anamaria Vartolomei, com uma câmera próxima que nos coloca dentro da pele dela, o filme se torna cúmplice de sua aflita tentativa de resistir, de continuar vivendo do modo como acredita, ocupando o espaço que lhe parece justo. As outras pessoas, quase sem exceção, só entram em foco para ficar claro como ela não pode contar com elas, como se falassem línguas diferentes. Sabendo ou não do problema, ninguém consegue realmente vê-la, seja sua mãe (Sandrine Bonnaire), a amiga Brigitte (Louise Orry-Diquèro), ou o professor que admira sua inteligência (Pio Marmaï). Mesmo quem sabe de tudo, como o colega Jean (Kacey Mottet Klein), nem sempre se comporta bem o bastante.
Nesse emaranhado de relações, ressalta por parte da diretora não um desejo de julgamento mas um esforço em retratar uma época profundamente impregnada de conservadorismo, especialmente em relação ao comportamento sexual das mulheres - de quem se esperava, no entanto, um maior desempenho estudantil e profissional. É como se as moças tivessem sempre que apartar de si o aspecto íntimo, especialmente se se mostrassem desejosas de escapar ao modelo mãe de família.. Ainda não estava claro o que essa outra mulher livre poderia ser e mesmo muitas jovens rejeitam as atitudes de Anne - algumas por moralismo, outras, por preconceito de classe.
As sequências envolvendo tentativas de aborto são particularmente lancinantes, especialmente para quem é mulher - lembrando situações vistas, por exemplo em Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias, de Cristian Mungiu, Palma de Ouro 2007. Essas experiências evocam a jornada quase suicida que as mulheres que resistem à proibição do aborto são levadas a enveredar, diante do olhar omisso, moralista, conivente ou hipócrita do resto da sociedade. E sobra para todo mundo alguma responsabilidade sobre a questão. Particularmente eficiente é a forma como se mostram dois médicos - um deles, agindo contra os interesses de Anne, outro (Fabrizio Rongione), até certo ponto solidário mas sem ousar dar o próximo passo.
Outro destaque é a honestidade de Anne, que não alega nada além do próprio desejo para fazer sexo - que ela continua querendo, assim como pretendendo escolher a hora em que pode ou não ser mãe e constituir família. Não se entra em considerações morais ou religiosas, apenas no direito de cada uma levar a vida como quiser.
Um aspecto que contribui para que o filme mantenha uma urgência contemporânea é uma direção de arte, figurino e maquiagem que não pesam mais do que o necessário na caracterização dos anos 1960, trazendo toda sua problemática bem mais para perto. Pode-se, assim, encaixá-lo nos muitos países do mundo em que o aborto ainda não é legal, como no Brasil, ou em outros em que ocorreram retrocessos, como nos EUA e na Polônia. Na própria França, já começou uma mobilização feminina para inscrever na Constituição o direito ao aborto, conquistado em 1975, mediante uma lei aprovada pela ministra da Saúde, Simone Veil. No caso das mulheres, especialmente, as conquistas parecem sempre estar em disputa.