Por mais que possa parecer, e alguns irão insistir nisso, Ferrari não é exatamente um filme sobre corridas. Embora elas sejam um ponto central aqui, além de muito bem filmadas, essa é uma história sobre administração de riscos – tanto na pista quanto numa empresa. Enzo Ferrari (Adam Driver) enfrenta um momento crucial na empresa que leva seu nome, e é preciso que algum piloto da Scuderia Ferrari vença a Mille Miglia, pois, disso depende a existência da empresa.
Projeto dos sonhos de Michael Mann, que ele ficou gestando por três décadas, Ferrari é um filme visceral marcado pelo barulho de motores gritando o tempo todo. Entre uma corrida e um treino e outros, o longa acompanha a vida pessoal de Enzo, dividido entre um casamento, com Laura (Penélope Cruz) e um caso extraconjugal com a jovem Lina Lardi (Shailene Woodley), e, assim como carros durante as corridas, esses são dois mundos que podem colidir a qualquer momento e pegar fogo.
Quem o vê de fora, acredita que Enzo, uma celebridade, leva a vida perfeita, criador de alguns dos carros mais admirados e invejados do mundo, um tesouro nacional da Itália. Porém, tudo está ruindo ao seu redor, do casamento à empresa. E Driver interpreta esse protagonista com seriedade e estoicismo – além de um cabelo grisalho sempre penteado para trás, e ternos extremamente bem cortados.
Acompanhando alguns meses em 1957, um ano depois da morte do filho de Enzo e Laura, a decadência da empresa parece estar ligada ao destroçamento espiritual do personagem, que encontra com a amante e o filho deles de 12 anos a sanidade e alegria que já não tem na vida doméstica ou profissional. Mas Laura, eventualmente, descobrirá esse caso, e quer buscar vingança.
Laura é uma personagem repleta de nuances. Da mater dolorosa à empresária com mais visão do que o marido a quem as corridas interessam mais. Cruz está incendiária como a mãe sofredora, a mulher vingativa e a mulher de negócios que não vai deixar ir à falência a empresa que fundou com o marido.
O sucesso dessa empresa, no entanto, depende da grande paixão do marido, vencer a corrida. E, para isso, ele conta com cinco corredores, mas apenas três tem realmente chances: o veterano Piero Taruffi (Patrick Dempsey), o ingles Collins (Jack O’Connell) e o espanhol Alfonso De Portago (interpretado pelo brasileiro Gabriel Leone), cujo nome começa a brilhar, inclusive por seu romance com uma atriz famosa, Linda Christian (Sarah Gadon).
Enzo tem a fama de “fazedor de viúvas”, uma vez que sua equipe nem sempre termina a prova com a mesma quantidade de pilotos vivos com a qual começou. Mann, por sua vez, filma as disputas com a esperada intensidade e esmero técnico típico de seus filmes. Impressiona e muito a maneira como a câmera, de Erik Messerschmidt, e a montagem, de Daniel Pemberton, constroem as imagens.
Há poucos dias, a Ferrari publicou em suas redes sociais um vídeo de um pit stop ao qual chamou de “arte em movimento” (houve, porém, uma gafe nas imagens, mas isso pouco importa), uma expressão que poderia, claramente, ser usada também para o filme. Mann filma como ninguém. Seu esmero visual e sua paixão pela movimentação de câmera nem sempre recebem o reconhecimento devido, mas aqui ele não deixa dúvidas de que seus filmes são potentes Ferraris.