Em Elvis, a cinebiografia estridente e histriônica do ídolo da música dirigida por Baz Lurhman, Priscilla Presley é quase uma nota de rodapé, com poucas cenas e ainda menos falas. Priscilla, de Sofia Coppola, não é exatamente uma resposta ao outro filme, mas poderia ser. Priscilla Ann Beaulieu está no centro da narrativa. O longa é sua versão do seu casamento, mas, mais do que isso, é a história de uma jovem mulher tomando por si mesma as rédeas de sua vida.
De uma forma ou de outra, toda a filmografia de Coppola, que inclui As virgens suicidas, Encontros e Desencontros e Um lugar qualquer, é a história de jovens mulheres tomando consciência de si mesmas como mulheres numa sociedade marcadamente patriarcal, e o que fazem a partir disso. São história de mulheres reclamando seus corpos e mentes da subjugação masculina. A diretora parece, acima de tudo, saber que esse é um processo doloroso e marcado pela aceitação de si mesma.
Priscilla, nesse sentido, é um filme paradigmático no cânone de Coppola, explicitamente sobre uma garota que passa à vida adulta durante o casamento com um dos homens mais famosos do mundo naquele momento. Cailee Spaeny, ganhadora do prêmio de atriz no Festival de Veneza, atravessa o filme como a personagem dos 14 aos 28 anos, e é muito convincente.
Filha de militares, vivendo numa base na Alemanha, a adolescente Priscilla não tem muito contato com o mundo fora dessa bolha, até que, numa festa, conhece Elvis (Jacob Elordi), que estava servindo o exército no mesmo local. A paixão é instantânea, e o filme não se furta de mostrar o quão estranho era um homem de 24 anos seduzir uma adolescente. Mas os tempos eram outros. Priscilla se encanta com a maneira despojada pela qual Elvis se apresenta a ela – é algo entre o ídolo internacional e o homem comum que nunca mais seria.
A história de amor deles é conturbada. Os pais dela, é claro, não aceitam o relacionamento, mas, ecoando uma frase do filme de estreia de Coppola, As Virgens Suicidas, Elvis diz ao pai da moça: “Minhas intenções com ela são completamente honrosas, senhor.” Para Priscilla, ela está vivendo um sonho – o de milhares de garotas da época. Elvis se recusa a manter relações sexuais com ela, embora, se torne abusivo em todos os outros campos.
Desde a chegada da jovem a Graceland – os pais assinam um documento passando a tutela dela ao pai de Elvis –, Priscilla é sufocada e oprimida por Elvis. Ele diz a ela o que vestir, como se maquiar, como se comportar, como agir. É um abuso que se dá de maneira aparentemente delicada, quase persuasivo, ainda assim é abuso. Ele é cercado sempre por seus amigos, jovens mafiosos, que funcionam quase como uma claque, rindo e aplaudindo tudo o que ele faz e fala – outros algozes de Priscilla.
Como retratar um relacionamento assim? Coppola encontra um componente quase lúdico que havia na delicadeza com que Priscilla se entrega ao marido. É uma mistura de ingenuidade com paixão que permitem que ela aceite os abusos. Ele é mais velho, sabe mais sobre o mundo e a vida. Mas, aos poucos, há uma inversão. À medida que Priscilla amadurece, Elvis torna-se cada vez mais infantilizado. É nessa trajetória, que ela encontra sua voz, sua própria vida.
É interessante também como Coppola pouco se importa com as figuras icônicas. Elordi em nada lembra Elvis, e isso não faz a menor diferença. O filme está interessado em efeitos, não em precisão histórica ou visual. Apenas num breve momento o vemos no palco – afinal, o filme não é sobre ele. Priscilla, no entanto, está em praticamente todas as cenas.
Coppola não teve autorização para usar as músicas de Elvis no filme, e isso acabou sendo uma vantagem distintiva para Priscilla. Em lugar das obviedades que seriam inevitáveis como Love me tender e Suspicious mind, temos I will always love you, na versão original de Dolly Parton; Crimson and Clover, clássico da banda americana Tommy James and the Shondells; Baby I love you, dos Ramones; ou How you satisfy me, da banda de rock australiana Spectrum.
Essa música entra em cena no momento em que Priscilla chega à mítica mansão Graceland. A letra diz, entre outras coisas, “Oh, querida, você não vê/ Como me satisfaz?” Versos que, se num primeiro momento, soam apaixonados, no fundo, traduzem a base de um relacionamento abusivo. Tal qual Priscilla viveria naquele lugar.