- Por Neusa Barbosa
- 12/11/2003
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O ator Marco Nanini brilha na interpretação do pianista de boate Apolônio Brasil, o protagonista do filme de Hugo Carvana, Apolônio Brasil - Campeão da Alegria. No auge de sua maturidade, Nanini transpira a humanidade de seu personagem por todos os poros, arriscando-se mesmo a cantar, até bem, músicas como Se Todos Fossem Iguais a Você e outros sucessos românticos dos anos 50 e 60, para recuperar a atmosfera da Bossa Nova, da dor-de-cotovelo e dos crooners que pautava a boemia do Rio e de São Paulo então. O filme todo é, afinal, um musical de época, uma raridade no cinema brasileiro atual, bem longe do auge das chanchadas da Atlântida onde filmes recheados de canções e cantores estavam na ordem do dia. Pode-se até elogiar a coragem de Carvana em arriscar-se num gênero que não domina. Ironicamente, é nessa parte do musical que ele se sai melhor do que na comédia em si, amparado ainda numa cuidadosa reconstituição de época, a cargo do diretor de arte José Joaquim Salles e da figurinista Kika Lopes. Há mesmo ótimas seqüências, como a dos loucos no hospício, onde Nanini, Antônio Pedro (sempre impagável e figura obrigatória nos filmes de Carvana) comandam uma anárquica interpretação da muito apropriada música Neurastênico.Outro ótimo momento é a cena no apartamento infestado de fumaça de maconha onde uma turma dá uma festa, em pleno final dos anos 60, auge da ditadura militar. O vizinho ao lado, um major (Jonas Bloch) interrompe a farra e é tapeado pelos convidados a tomar um certo comprimido, como se fosse para dor-de-cabeça. Na verdade, é LSD e o rígido militar entra na maior viagem. Com certeza, é uma bem-vinda esculhambação nos anos duros da ditadura, ainda pouco explorados pelo cinema brasileiro, menos ainda pela via cômica. Uma falha que começa a ser sanada e logo mais contará com a companhia de A Taça do Mundo é Nossa, pela turma da Casseta & Planeta, cuja estréia está marcada para 21 de novembro. O problema é que quando sai do musical e entra na trama cômica paralela Apolônio Brasil não funciona tão bem. Ao final, é um filme esquizofrênico em que as duas metades dialogam mal entre si. O fio condutor da história é um obscuro cientista louco americano (José Lewgoy, em seu último papel no cinema) que se apodera do cérebro de Apolônio, morto há pouco, e reúne seus amigos, amantes e filho. O objetivo é obter deles a autorização para clonar o que seria o gene da alegria que em Apolônio está muitos graus acima do resto da humanidade e exportar isso para "países tristes". O desenvolvimento deste enredo caminha decididamente rumo a um tom entre o ingênuo e o trash e o filme todo ganharia muito se ele tivesse sido mais bem filtrado. Por trás de toda a concepção de Apolônio Brasil, paira a noção de um nacionalismo romântico do diretor Carvana. Não só o conceito de que aquele Brasil antigo da Bossa Nova e da dor-de-cotovelo, mergulhado em noites de boate encharcadas de copos de uísque, muita fumaça de cigarro e música de piano era melhor, mais romântico - ou simplesmente era algo de que Carvana tem uma assumida saudade, com certeza compartilhada por muitos de sua geração. Nada será mais decisivo para o filme do que o teste de público, como sempre. Resta saber se entre as platéias brasileiras, que recentemente consagraram na bilheteria visões tão diferentes do Brasil moderno quanto Carandiru, de Hector Babenco, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, por um lado, e comédias na linha de Auto da Compadecida, de Guel Arraes, ou Carlota Joaquina, de Carla Camuratti, haverá um nicho para curtir um filme com este espírito.