20/09/2024
Drama

A Doce Vida

Marcello Rubini é repórter de um jornal sensacionalista, mas espera um dia tornar-se um escritor reconhecido. Ele é uma espécie de guia da vida boêmia romana, circulando pelos ambientes freqüentados por celebridades das colunas sociais. Na noite, ele tornou-se amigo de Maddalena, uma jovem milionária, em busca de novas emoções. Ao retornar a sua casa, Marcello percebe que Emma, sua amante enciumada, tentou o suicídio.

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A circulação, em retrospectivas ou em streaming, de um clássico da estatura de A Doce Vida, de Federico Fellini, é uma oportunidade para reavaliar o impacto de uma obra que o tempo parece tornar ainda mais abrangente, influente, emocionante.
 
Nada foi planejado. Fellini, com sua habitual ironia, que se voltava inclusive sobre si mesmo, costumava dizer, vinte anos depois de ter feito o filme, que não sabia então, nem soubera antes, que diabo queria ter feito ali. Humor à parte, era isso mesmo – o que apaixonava o diretor italiano em seu trabalho era aquela sensação de cenário vazio, de página em branco, que o levava a sentir que tudo era possível e o impulsionava a lançar-se em suas aventuras mágicas na tela.
 
“Nada se sabe; tudo se imagina”, costumava dizer Fellini. E o que ele fez neste filme, com a participação de uma equipe extraordinária, de roteiristas, assistentes, cenógrafos, fotógrafos, montadores, musicistas, foi, em primeiro lugar, marcar um novo estilo narrativo dentro do cinema italiano, afastando-se da sombra sagrada do neorrealismo. Ele, que tinha sido roteirista ou assistente de Roberto Rossellini em cinco filmes (Roma, Cidade Aberta; Paisá; O Milagre, em que também atuou; Francisco, arauto de Deus e Europa 51), ousou dar um passo larguíssimo adiante do mestre e este o criticou. Achava a fragmentação do estilo narrativo de A Doce Vida, que tem uma capacidade extraordinária de abarcar personagens e situações, um “vício expressivo”.
 
Toda sorte de incidentes interromperam, temporariamente, o percurso do filme, para começar a dificuldade de Fellini para encontrar um produtor. O todo-poderoso e normalmente afiado Dino De Laurentiis esnobou o projeto – não gostou do roteiro, considerando-o “caótico” e, além do mais, queria um ator norte-americano como protagonista, possivelmente Paul Newman. Antes de lançado, o filme foi objeto de vaias, protestos e tumultos em premières, como a de Milão, em fevereiro de 1960. A Igreja Católica condenou a obra quase unanimemente e puniu dois solitários jesuítas que a apoiaram então, inclusive um deles com a proibição de escrever novas críticas por 25 anos...
 
Não escapou de vaias nem mesmo o escritor Georges Simenon, presidente do júri do Festival de Cannes que lhe deu a Palma de Ouro, ajudando a incendiar a trajetória de um cometa que depois se tornou uma sempre crescente e cada vez mais vívida constelação. Ou, como tão bem definiu o crítico Tullio Kezich, que acompanhou as filmagens: “O filme operou o milagre da ressurreição do cinema italiano”.
 
Foi o primeiro trabalho de Marcello Mastroianni com Fellini, que no ator encontrou o homem comum, desprovido de excesso de carisma e da ênfase na atuação que procurava para seu protagonista, o jornalista Marcello Rubini. Um homem dividido entre um desejo, cada vez mais distante, de tornar-se escritor, e a atração, que vai se tornando irresistível, de mergulhar num mundo cada vez mais rico, fútil, cínico e obcecado pela celebridade, que parece muito bem ser o germe do nosso tempo, despontando numa Itália que deixava para trás definitivamente o pós-guerra, no embalo do desenvolvimento econômico.
 
Se é Marcello o guia neste ambiente feérico, mas de brilhos falsos, não faltam personagens marcantes para dividir sua jornada, incorporando incursões pela luxuosa vida noturna da Via Vêneto, os palácios de uma nobreza decadente mas ainda influente e também pelas periferias onde pessoas pobres e destituídas habitam conjuntos residenciais precários e se acotovelam para seguir as pistas de falsos milagreiros (a ironia com que se trata este episódio certamente está na base da rejeição católica ao filme).
 
A amoralidade com que aborda a sexualidade também era uma novidade, com este Marcello que oscila entre os braços da noiva ciumenta, Emma (Yvonne Fourneaux), da amiga milionária, entediada e ninfomaníaca, Maddalena (Anouk Aimée), bem como as fantasias opostas desencadeadas por uma diva estrangeira, Sylvia (Anita Ekberg e sua louríssima explosão na Fontana di Trevi), e uma ingênua garçonete adolescente, Paolina (Valeria Ciangottini, que empresta seu rosto à enigmática cena final). Uma inconstância que tem seu contraponto na figura de Steiner (Alain Cuny), um intelectual idealista, mentor de Marcello e de seu caminho na literatura, cuja solidão neste mundo esvaziado de sentido transforma-se numa brutal nota trágica que assustou inclusive os produtores do filme.
 
Se antecipava ou não o efeito que causaria por todos estes anos – provavelmente, nem poderia -, sem dúvida Fellini não teve medo de arriscar, de afrontar os moralistas e intolerantes de plantão. Assim, transformou este formidável turbilhão de ideias levantadas por ele mesmo, seus roteiristas (Tullio Pinelli, Ennio Flaiano, Brunello Rondi) e diversos amigos num painel múltiplo e vibrante da modernidade, um retrato do que é estar aqui e agora, sem nunca pretender dourar a pílula, dar lições nem negar a poesia intrínseca do ato de estar vivo.  
 
Sobre a repercussão, mais uma vez Tullio Kezich definiu melhor do que ninguém: “(O filme) detonou como uma bomba em fevereiro de 1960. No dia seguinte, a Itália não era mais a mesma. Certamente, não foi A Doce Vida que a transformou, mas foi seu anúncio ostensivo. Desembarcados da grande nave felliniana, nossa cabeça girava um pouco”.
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