A dicotomia campo e cidade nunca se materializa em Histórias que só existem quando lembradas, mas está sempre presente nas entrelinhas desse drama nacional. Estreia na ficção da diretora Julia Murat, o filme começou sua carreira numa mostra paralela no Festival de Veneza do ano passado, e desde então passou por diversas mostras pelo mundo – ganhando prêmios como o de público no Festival de Cinema Brasileiro de Paris, prêmio ecumênico no Festival de Cartagena e melhor filme no Festival de Abu Dhabi.
O embate entre passado e presente materializa-se na questão da memória, já apontada pelo título. As histórias, quando deixam de ser contadas, deixam de existir. A trama, assinada por Julia, Maria Clara Escobar e Felipe Sholl, começa estabelecendo um padrão de existência para os personagens.
Como na música de Chico Buarque, todo dia a protagonista faz tudo sempre igual. Madalena (Sonia Guedes) prepara o pão que será vendido no armazém de Antonio (Luiz Serra), que faz o café para eles dois. No vilarejo onde moram, o cemitério está fechado, pois, há anos, ninguém morre. Assim como a linha do trem que não cumpre sua função, uma vez que nem cargueiro atravessa o lugar.
O tempo parece estancado – temos dúvida sobre qual tempo é esse. Até a chegada de uma forasteira, Rita (Lisa E. Fávero), jovem que aluga um quarto na casa de Madalena. Como é típico em narrativas sobre campo e cidade, ela é uma estranha que chega para acabar com a harmonia tácita do lugar. A moça gosta de fotografar – tem uma câmera moderna, mas também usa métodos arcaicos, revelando fotos num latão.
Essa ruptura trará consequências e conflito, tanto para os moradores quanto para Rita. O elemento estranho não consegue se impor – talvez nem tenha esse interesse – e, por fim, acaba assimilando e sendo assimilada pelos costumes locais. No duelo entre progresso e tradição, nem sempre um dos dois sai ganhando. O melhor resultado é aquele capaz de somar, ao invés de excluir.
Júlia – que é filha da cineasta Lucia Murat (Uma longa viagem) – tem bom trato com atores e deixa Sonia Guedes dominar a cena. Porém, às vezes, o filme se mostra estetizado demais, muito meditado para ter imagens bonitas, e estas parecem mais a causa da existência do longa – e não a consequência, como deveria ser. Tal qual a chegada de Rita, Histórias que só existem quando lembradas é um filme que causa estranhamentos – pena que, boa parte do tempo, eles sejam tão claramente premeditados.