Numa casa afastada no litoral remoto do Chile, vivem reclusos padres que cometeram algum tipo de crime e expiam suas faltas numa rotina de isolamento. Uma de suas poucas emoções está nas apostas que fazem em corridas de galgos da localidade, eles que mantêm um desses cães como distração. Um dia, chega um novo padre para ficar com eles. Mas um estranho que o conhece começa a fazer escândalo em sua porta e ameaça o segredo do grupo. No Sesc Digital (até 30/3/2025).
- Por Neusa Barbosa
- 28/09/2015
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Em seu drama, O Clube, o diretor chileno Pablo Larraín cria uma trama que entrelaça relações de poder e os acobertamentos da Igreja Católica, numa história em torno de um refúgio de ex-padres culpados de algum tipo de crime, no litoral do Chile.
O filme, que venceu o Urso de Prata (Grande Prêmio do Júri) no último Festival de Berlim é, mais uma vez, resultado de um amplo trabalho de pesquisa e construção dramatúrgica, como em todas as obras deste excelente diretor, que já filmou antes Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e o No, que foi indicado ao Oscar de filme estrangeiro em 2013.
Pelo rigor e profundidade do filme, foi surpreendente a declaração do ator Alejandro Goic, que representou o elenco no Cine Ceará, em junho – onde o filme foi mais uma vez premiado - de que se tratou de uma “filmagem de guerrilha”, ou seja, realizada em escassos 19 dias, sem ensaios prévios, em jornadas de trabalho intensivas e com equipe técnica reduzidíssima. O resultado final traduz essa urgência e também a grande experiência não só do diretor, como de seus co-roteiristas (Guillermo Calderón e Daniel Villalobos), com passado como dramaturgos, assim como seus principais atores, caso de Goic e também de Jaime Vadell, Alejandro Sieveking, Roberto Farías e Alfredo Castro (um ator-fetiche do diretor, presente em todos os seus trabalhos anteriores).
Num clima claustrofóbico, tendo como cenário uma grande casa isolada, numa colina que descortina o mar, num clima permanentemente frio e nublado, o enredo acompanha o cotidiano doentio de quatro ex-padres, todos com um passado que envolve pedofilia, ocultação de crimes dos militares na ditadura e até sequestro de crianças, num lugar supostamente dedicado à penitência e recuperação.
Eles têm a companhia de uma única mulher, a irmã Monica (Antonia Zegers, de Post Mortem), uma espécie de governanta e vigia, que cuida das tarefas domésticas e também é a que mais tem vida social no pequeno povoado próximo. Os demais pouco podem sair à luz do dia ou conviver com outras pessoas, um isolamento que também é parte de seu ritual de expiação. Uma única atividade os apaixona: cuidar de um galgo, que participa de corridas, com um desempenho tão bom que permite aos ex-religiosos acumularem dinheiro com apostas, um lucro que certamente não faz parte de nenhum manual de boa conduta religiosa, mas é uma espécie de desvio tolerado nesta comunidade nas sombras.
A rotina é sacudida pela chegada de um novo integrante, o padre Lazcano (José Soza). Assim que este aparece, surge diante da casa um homem desvairado que grita dia e noite, Sandokan (Roberto Farías), acusador implacável do recém-chegado e criador de uma ameaça de escândalo e exposição pública da real identidade dos ocupantes da casa. O dilema do forasteiro tem desenlace trágico e provoca a vinda de um emissário da Igreja, o padre Garcia (Marcelo Alonso), que tem poderes inclusive para desmontar este grupo – que é a coisa que todos mais temem, já que não têm mais lugar no mundo lá fora, como verdadeiros párias sociais.
Em sua passagem por Fortaleza, o ator Alejandro Goic destacou que estas comunidades secretas de ex-padres realmente existem e têm o objetivo principal de “ajudar estes padres a escapar da justiça”. Ele lembrou que um projeto da Igreja Católica, de comprar uma ilha no Caribe para abrigar estes ex-padres, somente foi abortado devido à imensa repercussão negativa da ideia.
O personagem de Goic, o padre Ortega, um homem envolvido no desvio de bebês, filhos de adolescentes que eram convencidas de que seus filhos haviam nascido mortos, quando na verdade eram encaminhados para adoção, baseia-se numa pessoa real, de nome Joignant. Mas o ator destacou que a construção de Ortega no filme é uma “livre adaptação” do caso e que nunca foi feito um “estudo direto” desta pessoa, nem jamais houve uma intenção de retratá-lo especificamente.
Como em todas as suas obras anteriores, sobressai a disposição de Pablo Larraín de expor as ligações entre os desvios destes padres e o poder – alguns deles, sob a ditadura de Augusto Pinochet. Um dos ocupantes da casa é um ex-capelão militar que sabia das mortes clandestinas do regime mas se calou diante dos crimes. É desta cumplicidade criminosa e de uma culpa nunca expiada que ele quer falar, com a habitual precisão cirúrgica, que aqui equivale à perícia de um médico legista empenhado no desvendamento de uma causa mortis, mas sem frieza. Pelo contrário, O Clube reveste-se de uma contundência e intensidade que não deverá deixar indiferente nenhum de seus espectadores.