19/01/2025
Suspense Espionagem

Ponte dos espiões

Em 1957, auge da Guerra Fria, o FBI prende um acusado de espionagem pró-soviética, Rudolf Abel. É indicado para defendê-lo um advogado de prestígio, James Donovan, que se recusa a simplesmente participar de um circo e o defende seriamente. Anos depois, o mesmo advogado será chamado para ser o intermediário de uma arriscada troca de prisioneiros na Alemanha Oriental, envolvendo espiões dos EUA e URSS.

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Voltando à direção depois de três anos (o último trabalho nesta linha foi Lincoln, 2012), Steven Spielberg mergulha numa história com molho de sobra tanto de espionagem quanto de discussão moral e ética em Ponte dos Espiões. Mais uma vez, parte de uma figura real, neste caso, do advogado James Donovan, encarnado por um dos atores favoritos do diretor, Tom Hanks.
 
Foi o dramaturgo britânico Matt Charman quem apresentou a Spielberg a história deste homem extraordinário, que protagonizou uma das mais espetaculares trocas de prisioneiros entre os EUA e o bloco comunista, envolvendo a então URSS e a Alemanha Oriental. Grande fã de espionagem, o diretor enxergou no enredo uma ótima oportunidade não só de reciclar os fatos num filme de época mas especialmente de usá-los para comentar o presente sob outro ângulo.
 
Sem dúvida, o roteiro assinado por Charman e os irmãos Ethan e Joel Coen, oferece a Spielberg a oportunidade de compor um filme bem mais envolvente do que Lincoln que, apesar de suas qualidades e dos méritos inegáveis do ator Daniel Day-Lewis (que com ele venceu seu terceiro Oscar), ressentia-se de uma certa rigidez, talvez por tratar-se de figura revestida de enorme sacralidade patriótica. Donovan, por sua vez, é um homem comum, um pai de família, um advogado 100% ético, obcecado por seguir as leis e ser honesto, mesmo quando seu próprio país espera que ele não o faça. Ou seja, um personagem feito sob medida para o bom e velho Tom Hanks.
 
A história decola em 1957, auge da Guerra Fria entre as superpotências EUA e URSS. O FBI espiona e finalmente prende um suposto espião pró-soviético, Rudolf Abel (Mark Rylance, vencedor do Oscar e do Bafta de melhor coadjuvante). As autoridades americanas querem que o seu julgamento transcorra sob a mais límpida aparência de legalidade. Por isso, convoca-se o prestigiado advogado Donovan como defensor do réu. Naquele momento, Donovan dedicava-se a seguros e resiste a entrar neste campo minado da política. É convencido, no entanto, de sua missão patriótica e decide fazer seu trabalho direito. Começa por questionar os próprios fundamentos da prisão de Abel, que não seguiu todos os trâmites devidos.
 
Por fazer o que se espera de um defensor na autodenominada maior democracia do mundo, Donovan torna-se, tanto quanto seu cliente, alvo de campanha difamatória e de caça às bruxas. Aparentemente, ele é o único que acha que, neste caso como em qualquer outro, o advogado deve fazer o máximo para proteger seu cliente, independente de suas filiações ideológicas. A opinião pública e o próprio aparato judicial não esperavam por isso e sim que ele apenas fizesse de conta. Donovan não é desse naipe.
 
Parte do filme dedica-se, assim, ao drama de tribunal, bastante envolvente e com evidentes ligações com situações contemporâneas – os prisioneiros de Guantánamo vêm à mente em mais de uma ocasião. O filme desafia o maniqueísmo, dando a Abel oportunidades de afirmar-se bem mais do que se esperaria de um mero coadjuvante, invocando respeito, ainda que não necessariamente concordância. Mas, como sustenta Donovan, não é a conduta isenta perante os adversários que faz o mundo ocidental sentir-se moralmente superior ao outro lado ?
Num outro momento, Ponte dos Espiões faz jus ao título e lança o advogado numa jogada mais arriscada, envolvendo justamente a troca do prisioneiro Abel por um jovem piloto americano, Francis Gary Powers (Austin Stowell), capturado quando espionava instalações soviéticas.
 
Mais uma vez, o relutante Donovan é convencido de outra missão patriótica. E novamente ele não obedece inteiramente ao protocolo. O agente da CIA que o acompanha, Hoffman (Scott Shepherd), insiste em que ele atue exclusivamente para resgatar Powers. Mas o advogado fica sabendo que um jovem estudante americano, Frederic L. Pryor (Will Rogers), foi preso pelos alemães-orientais naqueles primeiros dias da instalação do Muro de Berlim, em 1961. E quer salvá-lo também, ainda que, a rigor, isto coloque toda a operação de troca em risco.
 
 É fácil enxergar o quanto são oportunos os vários temas contidos no filme, girando em torno de um personagem que permite a discussão do próprio conceito de heroísmo. Esse advogado que respeita mais a lei do que a conveniência pessoal e que acredita em levar princípios até o fim – e se mostra capaz de reconhecer qualidades no “inimigo” – é um símbolo da civilização que se afirma sobre a barbárie. Senão, como ele acredita, nos tornamos todos bárbaros. Há muito o que dizer sobre esta história, mas é disto que Spielberg quer falar, e o faz com uma nitidez cristalina.
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