04/10/2024
Drama

Paraíso perdido

"Paraíso Perdido" é uma boate gerenciada por José, cujos filhos e netos são a atração principal do local, cantando todas as noites. Uma família repleta de problemas e questões mal resolvidas, mas ainda assim unida e apaixonada.

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Paraíso Perdido, escrito e dirigido por Monique Gardenberg (Ó Pai Ó) é um filme de resistência. Numa época que cinema, literatura e televisão colocam em cena famílias fraturadas nas quais todos se odeiam, o longa vai no sentido contrário, trazendo como protagonista um clã que se mantém unido apesar das adversidades, tendo a música como uma espécie de mediadora das relações. É um filme melancólico, no qual as pessoas se amam apesar de seus erros – ou, possivelmente, por causa deles.
 
O cenário principal, quase único aqui, é uma boate chamada Paraíso Perdido, onde o dono, José (Erasmo Carlos), e sua família cantam para almas tão perdidas quanto eles em busca de algum alento. Gardenberg fez uma aposta arriscada na estrutura de seu filme: são diversos personagens em cena, e cada um assume a posição de protagonista em determinado momento. Seus pequenos dramas individuais ganham uma dimensão maior quando vêm ao centro do palco.
 
Ângelo (Julio Andrade) é um dos filhos, que nunca superou a perda da mulher que o abandonou, deixando uma filha, Celeste (Julia Konrad), agora uma jovem adulta, que está grávida do namorado (Felipe Abib), um sujeito esquentadinho, pouco estável e nada preparado para ser pai. Eva (Hermila Guedes) é a filha que está fora do Paraíso – ela não foi expulsa, mas está presa por ter matado um amante que abusava dela. Seu filho é Imã (Jaloo), uma drag queen, que se envolve com Pedro (Humberto Carrão).
 
Diretora de teatro respeitada, Gardenberg sabe criar uma relação orgânica entre o palco e a vida dos personagens. Um dos momentos mais bonitos do longa é quando Celeste revela a Imã que está grávida. Ele está se apresentando, ela está sentada numa mesa e o diálogo se dá inteiramente em libras. É um momento poético e simbólico sobre a força do não-verbalizado na vida dessas pessoas. A tensão se dá exatamente pelo excesso das músicas (o repertório é todo de canções românticas e/ou melosas) e da linguagem não-verbalizada dos surdos-mudos.
 
A nossa entrada na boate Paraíso Perdido ocorre junto com Odair (Lee Taylor), policial contratado por José para fazer um bico como segurança de Imã. O rapaz é levado ao bar por outro membro do clã, esse uma espécie de filho adotivo: Teylor (Seu Jorge), aspirante a ator. É pelos olhos do jovem que as relações se descortinam e que descobrimos que Eva está presa (logo deverá ser solta), além de outros fantasmas do passado dessa família.
 
José funciona como o astro-rei em torno do qual tudo gira e que, com seu poder, tudo organiza. Nesse sentido, ter uma figura como Erasmo Carlos no papel é providencial. Ele pode não ter tantas cenas, mas quando está na frente da câmera é impossível não querer olhar para ele – e, estranhamente, esquecermos de que se trata de Erasmo Carlos, o Tremendão. Temos aqui um grande intérprete. Outro grande intérprete em cena é Jaloo, um músico que estreia como ator – e que estreia! Não parece sorte de principiante. Seu trabalho delicado e, ao mesmo tempo, complexo na criação de Imã, torna-o um personagem que, como indica o nome, acaba atraindo todo o filme para si.
 
Em parceria com o diretor de fotografia Pedro Farkas, Gardenberg cria um universo próprio com uma paleta de cores de um neon palidamente melancólico encerrada na claustrofobia do Paraíso Perdido. Nesse sentido, as externas são momentos de respiro para os personagens. A direção musical, assinada por Zeca Baleiro, coloca em cena clássicos daquilo que se convencionou chamar de “música brega” – mero preconceito sociocultural, aliás, para aquelas músicas que melosamente falam de amor e afins –, e uma divertida versão de “You’re so vain”, que começa com “Você entrou na boate/ como quem entra no seu rico iate”.
 
Se a boate tem algo de asfixiante para esse grupo de pessoas, chega uma hora em que todos precisam deixar o Paraíso. O filme alcança algo de simbólico em seu clímax. É quando suas feridas começam a cicatrizar e essas figuras podem estar preparadas para enfrentar o mundo. O destino final, no entanto, não parece ser o inferno. O purgatório parece algo mais apropriado, um lugar onde a dor e a alegria convivem plenamente. 
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