04/10/2024
Comédia dramática

Green book - O guia

Em 1962, o pianista clássico Don Shirley precisa de um motorista firme e valente para encarar uma turnê, viajando a bordo de um Cadillac, no sul dos EUA - onde a segregação e o racismo continuam a vigorar, apesar das mudanças legais. A escolha recai sobre o descolado Tony Lip, um ítalo-americano rude mas pau pra toda obra.

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Diferenças de cor, classe e cultura viajam a bordo do Cadillac que ocupa o centro da comédia dramática Green Book – O Guia, um notável salto qualitativo do diretor Peter Farrelly. Condutor, ao lado do irmão Bobby, de comédias descabeladas dos anos 1990 como Débi & Lóide e Quem Vai Ficar com Mary?, Farrelly imprime aqui um ritmo adequadamente mais sóbrio, embora não desprovido de humor, para contar a história de Tony Vallelonga (Viggo Mortensen), um segurança e motorista ítalo-americano, e Don Shirley (Mahershala Ali), um pianista clássico negro. Dois personagens verídicos, aliás, assim como a viagem retratada pelo filme.
 
O ano é 1962, quando a luta pelos direitos civis já incendiara os EUA. Shirley, um pianista erudito, com títulos universitários de doutor em música, psicologia e artes litúrgicas que lhe valiam ser chamado de Dr. Shirley, preparava-se para uma turnê a partir de Nova York, onde morava, rumo ao sul do país – onde a segregação e episódios racistas ainda persistiam. Precisava, portanto, de um motorista com vocação para guarda-costas, perfil que cai como luva sobre Tony, cujos punhos, não raro, eram exercitados em sua função como porteiro de casas noturnas, como a Copacabana, de onde ele acaba de sair.
 
É o choque de dois mundos. Tony traz na pele e no sangue a sabedoria das ruas do Bronx, onde um “carcamano” como ele aprendera a sobreviver. Ele não tem nenhum dos refinamentos que, ao contrário, definem o comportamento de Don, um homem de classe média, filho de um pastor e uma professora, de educação esmerada e hábitos sofisticados. Tony, no fundo, é racista e não pegaria este emprego em outras circunstâncias. Mas precisa continuar sustentando a mulher, Dolores (Linda Cardellini), e os dois filhos pequenos e cai na estrada com o patrão.
 
Desde o começo, ninguém ignora que o road movie vai trazer ensinamentos para os dois lados. Atrás do volante, Tony observa com seu olho clínico descolado o comportamento de seu reservado chefe, que não esconde um certo horror por atitudes do empregado – como seus hábitos alimentares e modos à mesa um tanto trogloditas. Mas a curiosidade também é recíproca. Don tem à sua frente um digno representante da classe trabalhadora, pobre e pouco educado, que arranca sua sobrevivência de todo trabalho e expediente de que possa lançar mão, sem tempo ou oportunidade de uma educação formal, como a dele.
 
Um acerto no filme é evitar um tom paternalista nesta progressiva troca de informações entre os dois mundos, que vai sendo temperada por uma aproximação humana. Observando de longe as apresentações do patrão, em teatros ou mansões do sul, Tony descobre um outro tipo de música e sensibilidade. O patrão, por sua vez, se interessa pela emotividade do motorista, ajudando-o nas dificuldades de ortografia para escrever cartas à mulher. Nem por isso, no entanto, o filme se esquiva de uma certa amenização de seu grande tema central. 
 
Inúmeras situações, ao longo do caminho, permitirão a estes dois homens exercer algum tipo de solidariedade e defesa. O “guia” a que se refere o título do filme, afinal, é um verdadeiro manual de sobrevivência. Trata-se de um guia informativo de hotéis e restaurantes onde um afro-americano poderia hospedar-se ou alimentar-se sem problemas num sul que ainda restringia sua entrada em não poucos lugares. Na prática, o que o filme sublinha é que a vida de um negro corria muito perigo se desafiasse determinadas proibições – e Don não aceitou ir ao sul para ser obediente e conformado.
 
Premiado com três Globos de Ouro – melhor filme (comédia/musical), roteiro (co-assinado por Nick Vallelonga, filho de Tony na vida real) e ator coadjuvante (Mahershala Ali) -, Green Book... recebeu ganhou também três Oscar: melhor filme, ator coadjuvante (Mahershala) e roteiro original. Antes, já havia vencido o troféu de melhor filme do Sindicato dos Produtores Norte-Americanos - um dos mais nítidos sinalizadores do Oscar, já que os votantes são os mesmos. Além disso, recebeu indicações no Sindicato dos Roteiristas e no Sindicato dos Atores (também para Mahershala e Viggo).
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