Kardec deixa claro, desde o começo, que prega exclusivamente para convertidos. O que já é uma vantagem, ninguém entra ludibriado acreditando ser um filme laico. Uma espécie de hagiografia (se é que se pode usar essa palavra em se tratando de uma figura do espiritismo) de Allan Kardec – nascido Hyppolite Léon Denizard Rivail –, o longa acompanha a transformação do professor primário em pai do espiritismo, mostrando momentos-chave nessa jornada.
A narrativa começa com Rivail batendo de frente com o clero parisiense de meados do século XIX, quando era professor primário, depois que uma lei torna obrigatória aulas de catolicismo na escola. Ele acaba pedindo demissão e, sem trabalho fixo, tenta dar aulas particulares. Mesmo assim, ele e sua devotada esposa, Amélie-Gabrielle Boudet (Sandra Corveloni), encontram dificuldades. Nessa primeira fase, pré-espiritismo, o longa escrito por L. G. Bayão, a partir do livro de Marcel Souto Maior, tem dois objetivos: mostrar como o protagonista era um homem cético da ciência e caridoso.
Não custa muito, e a primeira característica logo é deixada de lado. O fenômeno das “mesas girantes” é uma febre nos salões em Paris, mas Rivail, investiga um pouco mais e logo descobre um golpe. Por outro lado, quando conhece algumas médiuns – e curiosamente, no filme, todas pessoas com poderes mediúnicos são mulheres – fica impressionado com as mensagens que elas trazem do além.
A transformação do protagonista em criador do espiritismo é rápida e pouco crível. O filme não tem tempo a perder com ceticismo, e que venha logo a religião! Rivail adota o nome de Allan Kardec – de uma de suas vidas passadas quando foi um druida – para sua primeira publicação no gênero, O livro dos espíritos, lançado em 1857.
A direção de Wagner de Assis é a mesma de seus outros filmes – Nosso lar, A menina índigo – pesada e um tanto anacrônica. Kardec parece um filme antigo em sua falta de respiro e vigor, algo que já não se faz há muito tempo. É especialmente ruim a direção do elenco cujas falas são ditas de maneira empostada e como num jogral – é preciso esperar que um personagem termine toda sua frase para que outro comece a falar, e isso até mesmo quando há um “acalorado” bate-boca.
Kardec passa longe de qualquer polêmica na qual seu protagonista não seja a vítima. Ele é expulso da Academia pelos amigos cientistas, perseguido pelo clero, por pessoas comuns e espíritos das trevas, além de enfrentar a ira de uma médium (Julia Konrad) que fica possessa pois seu nome não foi creditado no Livro dos Espíritos. Ainda assim, o protagonista luta com todas as adversidades – algumas delas com ajuda de espíritos – para propagar a doutrina que está criando.
Comparando com Nosso lar, Kardec é tecnicamente mais caprichado, o que não impede que as fachadas da Paris antiga feitas em computador sejam gritantemente falsas. Mas isso não é um problema, na verdade. O que frustra mesmo aqui é que um personagem com o potencial de Rivail – que começa repleto de dúvidas, questionamentos e termina criando uma religião – seja o tema de um filme tão insosso e desprovido de maiores ambições a não ser agradar a comunidade espírita.