Conhecida no Brasil sobretudo pelo cult Tomboy, vencedor do Teddy no Festival de Berlim 2011, a diretora e roteirista francesa Céline Sciamma desenvolve em Retrato de uma jovem em chamas um sensível relato conjugado no feminino, em torno de quatro personagens principais, na Bretanha de 1770. O filme venceu o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes e foi indicado ao Globo de Ouro e também ao Bafta, entre outras premiações de associações de críticos ao redor do mundo.
Uma condessa italiana (Valeria Golino) contrata uma jovem pintora, Marianne (Noémie Merlant), para pintar o retrato de sua filha, Heloise (Adèle Haenel). O desafio é que a moça se recusa a posar, já que este retrato é o que falta para concretizar seu casamento arranjado - é o retrato que deve, por protocolo, ser enviado ao noivo, em Milão. A pintora, portanto, deve esconder sua intenção, passando-se por mera acompanhante de Heloise e observando seus traços para trabalhar ocultamente.
Este jogo de aparências é cuidadosamente montado, expondo tanto as rígidas convenções que sufocavam as mulheres no século 18 quanto as brechas por onde elas começavam a rachar. Marianne, por exemplo, é filha de um pintor e herdeira de seu negócio, portanto, uma mulher livre. A participação neste círculo íntimo também da criada, Sophie (Luana Majrami), permite que se explore outros temas, como o aborto.
Aos 39 anos, Céline Sciamma, uma experiente roteirista, demonstra ter atingido a maturidade neste que é seu quarto longa, tornando-se uma das diretoras mais promissoras da cena mundial contemporânea. Neste filme, notavelmente fotografado por outra mulher, Claire Methon, há uma extraordinária composição de climas sutis, numa narrativa em que muito não é dito por palavras e sim sugerido por situações, gestos e olhares. De vários modos, o filme respira autenticidade, sacudindo a poeira que tantas vezes se abate sobre as produções de época. O gradual enamoramento de Marianne e Heloise é filmado com delicadeza e sem voyeurismo.
O maior acerto do filme provavelmente é captar, neste momento particular da História, dilemas da condição feminina que se projetam para nossa compreensão contemporânea, gerando identificação e empatia. Conta, para isso, com o afinamento de seu ótimo quarteto de atrizes (com menor, mas precisa, participação de Valeria Golino, que representa a mantenedora da ordem social preestabelecida, ou seja, a repressão dos instintos naturais, dos sentimentos espontâneos, da liberdade pessoal).
O papel mais dramático pertence a Noémie Merlant que, como a pintora, segura sobre os ombros o maior dilema. Seu enamoramento de Heloise coloca-a num impasse ético, pressionada entre a fidelidade à missão outorgada pela condessa e sua crescente devoção à amada, esta ameaçada por um inexorável destino de sufocamento pessoal pelo que o casamento, naquelas condições de tempo e lugar, significava para as mulheres.
Apesar de toda a sua beleza e intensidade, em termos de ritmo, no entanto, o filme sofre de algum peso em sua segunda metade, que não é tão viva e ágil quanto a primeira. Este reparo de modo algum quebra o encanto melancólico que a história é capaz de lançar.