Racismo. Ao mesmo tempo, a questão mais visível e invisível do país. Aquela que, quanto mais salta aos olhos, menos se fala. Mas que parece, finalmente, ter se tornado inadiável.
O documentário Dentro da Minha Pele, de Toni Venturi, com codireção de Val Gomes, procura traçar, através dos depoimentos de 9 personagens, algumas das dores, contradições, dilemas, afirmações e vitórias da população afrodescente do Brasil, o país com a maior composição étnica desta origem fora da África, o último a abolir a escravidão.
Médico, Estefânio Neto lembra as inúmeras vezes em que foi confundido com um assaltante. Doméstica, Neide de Souza recorda em lágrimas um primeiro emprego, em São Paulo, em que dormia no chão, comia restos de comida e era obrigada a usar papel higiênico de segunda mão. Estudantes universitários na FGV, admitidos por meio da política de cotas, Wellison Freire e Jennifer Andrade estão na linha de frente de um longo processo de conquista de espaços historicamente negados em ambientes preparados para rejeitá-los como intrusos.
Em alguns momentos, a câmera se volta para a equipe do filme, majoritariamente negra, mas liderada por um cineasta branco, como ele mesmo observa em off, descendente de italianos, parte daquela onda imigratória que começa no final do século 19, na sequência da tardia Abolição de 1888, justamente com o intuito de “branquear” a população brasileira. Vem da funcionária pública Neon Cunha, negra e trans, a provocação mais direta ao diretor, para que “ceda espaço” à codiretora, de ascendência negra e indígena. Enquanto não houver esta cessão por parte dos brancos, de seu lugar de privilégio e poder, “ a história não muda”, adverte Neon.
Seis pensadores negros, como o historiador Salloma Salomão, a filósofa Sueli Carneiro, a dramaturga e escritora Cidinha Silva e o diretor teatral José Fernando de Azevedo, contribuem como lúcidos comentários para uma reflexão que certamente não pretende ser definitiva, mas abridora de caminhos para uma percepção maior do fosso que separa negros e brancos na sociedade brasileira - atormentada ainda por um altíssimo índice de mortes de jovens negros nas mãos da polícia, como Renatinho, morto em 2015 no Itaim Paulista. Mais um, entre tantos, que preenchia o estereótipo do “tipo penal”, como define o tenente-coronel Adilson Paes, aposentado da PM: preto, pobre, morador da periferia. A definição, não-escrita, muito menos admitida, dos alvos preferenciais de um genocídio ativo.
Materializando a grandeza da ancestralidade afro (“foi ela que nos trouxe até aqui”, pontua Cidinha Silva), números musicais intercalam as falas, começando por Chico César, passando por Luedji Luna e Valéria Barcellos e culminando por Thaíde, que fecha os créditos ao som da sugestiva “Vai Mudar”. Mas muito esforço ainda esta nação terá que fazer para superar os pilares do racismo, apontados por Cidinha, que sustentam o atual estado de coisas: o mito da democracia racial; a ideologia do branqueamento e a naturalização da discriminação com piadas e brincadeiras francamente racistas. Termina-se com a fala de Salloma Salomão sobre a saída deste impasse. Mudar culturas é possível, salienta ele, mas o desafio é a luta pelo poder - um poder que, até aqui, sempre esteve nas mãos dos brancos.