20/09/2024
Fantasia Drama

O Barco

Numa isolada comunidade de pescadores, a rotina é abalada pela chegada de uma mulher, Ana. Jovem, livre e sensual, ela começa a despertar em A, o filho mais velho de um clã de 26 irmãos, o desejo de partir, rompendo tradições há muito estabelecidas.

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Em seu quarto longa, O Barco, o diretor Petrus Cariry mais uma vez pratica um cinema rigoroso, pleno de referências simbólicas, inconscientes, míticas e que, desta vez, de forma particular, transformou-se numa metáfora poderosa do País.
 
Dono de uma das obras mais autorais do cinema brasileiro contemporâneo, com O Grão, Mãe e Filha e Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois, Petrus partiu de um conto do escritor Carlos Emílio Corrêa Lima, de apenas três páginas. Pensou, de início, em transformar a história num filme poderosamente visual, como é até sua marca – o diretor também fotografa seus próprios filmes – e sem palavras. Desistiu desse projeto certamente hermético ao longo do processo de criação do roteiro, do qual participaram seu pai, o também cineasta Rosemberg Cariry, e Firmino Holanda. E, como é também marca de Petrus, a história foi sendo modificada no set, no cenário paradisíaco da praia das Fontes, em Beberibe, próximo de Fortaleza, e por uma peculiar e sombria intromissão da vida real.
 
Filmada em 2016, esta história de um vilarejo de pescadores isolados, cuja rotina é rompida pela chegada de uma mulher pelo mar, Ana (Sâmia de Lavor), foi atravessada pelo processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que Petrus acompanhava febrilmente nos intervalos da filmagem. “O real invadiu, mas eu só percebi isso depois, naquela nossa história que retrata pessoas tentando a tomada de um barco e de uma mulher explorada por muitos ”, admitiu Petrus, na coletiva de imprensa do Cine Ceará 2018, em que o filme venceu quatro prêmios (fotografia, trilha sonora original, som e Olhar Universitário).
 
Esta qualidade de metáfora do País pode até passar despercebida de muitos, devido à natureza poética em que a narrativa é estruturada, acompanhando a tentativa de duas mulheres, a matriarca Esmíria (Verônica de Lourdes), mãe de 26 filhos, nomeados cada um com uma letra do alfabeto, e a forasteira Ana, que encanta os pescadores com a sexualidade de seu corpo e o feitiço de suas histórias, de disputar o controle e as vontades desta comunidade que parece fora de tempo e lugar. Estas mulheres puxam, cada uma para um lado, A (Rômulo Braga), o filho mais velho de Esmerina, que oscila entre a ligação visceral com seu clã e o desejo de partir que é suscitado por Ana.
 
Ao mesmo tempo, O Barco pode ser lido como metáfora de um país disputado por muitas narrativas e que, em alguns momentos, parece estranhamente privado dos sentidos básicos – uma condição que é encarnada tanto por um pescador cego (Everaldo Pontes) quanto pelo pescador Pedro (Nanego Lira), pai da enorme família, que abre mão de falar depois de uma grande perda.
 
Muitas leituras, certamente, são possíveis a partir das imagens sedutoras, impactantes, hipnóticas deste filme que, apesar das aparências, foi fotografado praticamente apenas com luz natural e de alguns lampiões e candeeiros nas cenas noturnas. No som, aspecto a que Petrus dedica quase tanto tempo e apuro quanto na montagem (que ele assina com Firmino Holanda), foi aumentado o tom de alguns ruídos naturais, como o onipresente murmúrio do mar, para criar tensão, aproximando esse murmurar de timbres metálicos. Aí, Petrus confessa uma de suas admirações, o tailandês Apichatpong Weerasethakul, que “igualmente processa muitos seus sons de floresta”. A iluminação minimalista dos candeeiros é uma inspiração declarada nas luzes de velas de Barry Lyndon, de Stanley Kubrick.
 
De todo modo, trata-se de uma fábula, que flerta decididamente com o fantástico desde a origem literária – Corrêa Lima é autor de contos sempre nesta linha e muito sintéticos, o que forçou o cineasta a expandir este universo e seus diálogos. 
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