Isabel, matriarca de uma família de fazendeiros arruinados de S. Paulo, sofre com a morte de sua criada, a ex-escrava Josefina, que a amamentara e a seus filhos. Sua filha, a freira Maria, recorre a uma ex-escrava, Iná, para realizar um ritual de candomblé - que a freira pretende que seja um mero fingimento - para pôr fim às crises nervosas de Ana, sua irmã, que diz enxergar mortos.
- Por Neusa Barbosa
- 07/12/2020
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Uma reflexão sobre a pesada herança histórica escravagista brasileira permeia o drama Todos os Mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra. Exibido em competição no Festival de Berlim 2020, no Indie Lisboa e San Sebastián e triplamente premiado em Gramado, o filme explora as contradições vigentes na São Paulo de 1899, retratando as relações entre uma família branca, os Soares, e uma negra, os Nascimento.
O som é um dos meios através dos quais são introduzidos elementos contemporâneos - o ruído de um skate, de um helicóptero, etc. - no filme ambientado no século XIX, estabelecendo uma estranheza e também uma sugestão de como as épocas, afinal, se mesclam, em processos históricos que não são superados.
Na trama, a matriarca Isabel (Thaia Perez), sofre com a morte de sua criada, a ex-escrava Josefina (Alaíde Costa), que a amamentara e a seus filhos. A ruptura nesta dependência num nível tão íntimo e simbólico desencadeia um processo de instabilidade no clã, integrado também pelas filhas de Isabel, como Ana (Carol Bianchi) e a freira Maria (Klarissa Kiste).
Mesmo sendo religiosa, Maria recorre a uma ex-escrava, Iná (Mawusi Tulani) para que venha realizar um ritual de candomblé - que a freira pretendia que fosse um mero fingimento - para pôr fim às crises nervosas de Ana, que diz enxergar mortos e guarda lembranças das atividades místicas de Iná no passado.
Este entrelaçamento entre a decadente família senhorial Soares e a família trabalhadora de Iná - que tem um marido, Antônio (Rogério Brito), e um filho, João (Agyei Augusto) - permitem que o filme radiografe, com bastante intensidade, o panorama de uma sociedade republicana em formação, cujas estruturas sociais, desiguais e racistas, se mantêm, de várias formas, até hoje.
Fica muito clara a precariedade dos modos de sobrevivência dos ex-escravos, tão pouco tempo ainda depois da Abolição - que não lhes concedeu qualquer compensação - tendo que negociá-la dentro de condições claramente desfavoráveis. Iná, particularmente, encarna essa resistência, essa afirmação da população negra dentro de uma sociedade que não só não reservou lugar para eles como introduziu outros elementos para explorar em seu lugar, os imigrantes europeus - estes, com um claro propósito de “branqueamento” do Brasil.
A opção por um filme de época traduziu, para os diretores, uma vontade de falar da persistência da estrutura social brasileira, questionando, ao mesmo tempo, o conceito de precisão no retrato de época, já que tudo é interpretação. A História é sempre escrita pelos vencedores.
Em Gramado, festival que registrou sua primeira sessão no Brasil, Todos os Mortos venceu os prêmios de melhor trilha (Salloma Salomão), melhor atriz coadjuvante (Alaíde Costa) e melhor ator coadjuvante (Thomás Aquino).