A voz suprema do blues, dirigido por George C. Wolfe, parte de uma famosa peça de teatro de August Wilson (mesmo autor de Um limite entre nós), que conta um episódio fictício na vida de Ma Rainey, também conhecida como “A mãe do blues”. Antes mesmo de a personagem entrar em cena – interpretada por Viola Davis – sua fama a precede. Ela irá gravar um disco com seus maiores sucessos e, no estúdio, seu agente, Irvin (Jeremy Shamos), e o produtor do disco, Sturdyvant (Jonny Coyne), a aguardam ansiosamente. Há uma dúvida sobre que horas ela irá chegar – se é que irá chegar. Também a esperam os músicos de sua banda, entre eles o trompetista Levee (Chadwick Boseman, em seu último trabalho no cinema, premiado com o Globo de Ouro).
O roteiro de Ruben Santiago-Hudson é bastante fiel ao texto original, construindo a protagonista antes mesmo de ela entrar em cena e essa é uma estratégia sagaz. É bem provável que a maior parte do público desconheça Ma Rainey,falecida em 1939 e uma das primeiras cantoras profissionais de blues, negra e lésbica. Isso tudo numa sociedade ainda mais conservadora do que a de hoje. Foi, portanto, uma desbravadora. As primeiras referências a ela, no longa, podem dar a ideia de uma diva de comportamento exótico, mas o que se segue é exatamente a desconstrução dessa ideia.
Quando ela chega, seu porte é de rainha, com sua entourage, que inclui a namorada, Dussie Mae (Taylour Paige). Ela logo quer uma Coca-Cola – sem refrigerante, sem gravação, decreta. Essa demanda não tem nada a ver com comportamento de prima donna, é tudo questão de poder. Exigir a bebida é deixar claro quem está mandando ali – não são o agente e o produtor brancos, mas ela, a dona da voz, a artista. “Tudo o que querem é a minha voz. Eu bem aprendi isso e eles vão me tratar do jeito que eu quero ser tratada, não importa quanto isso os machuque.”
A banda, por sua vez, está tensa. Algumas discussões precedem a chegada da cantora. Levee tem suas próprias ideas sobre música e sobre como tocar de um jeito que agrade aos consumidores brancos, o que causa atrito com outros membros do grupo, que lhe dizem o quanto isso revela os valores dele. Ma Rainey, por sua vez, está interessada em dar voz – ou, para usar uma expressão contemporânea, dar o lugar de fala – ao seu povo, e, por isso, exige que seu sobrinho, mesmo sendo gago, faça a introdução da música – mesmo que isso custe diversas matrizes de gravação.
Wilson, um dos maiores dramaturgos negros dos EUA, morto em 2005, foi indicado ao Oscar, postumamente, em 2017 pelo roteiro Um limite entre nós, que havia adaptado de seu próprio texto, no final dos anos de 1980. Em suas peças, é bastante evidente, ele constrói as personagens e situações em camadas, revelando-as aos poucos, a cada cena trazendo novos elementos. Ma Rainey pode ser a protagonista, mas Levee tem um peso muito grande dentro da peça e do filme.
O rapaz está cansado de “tocar sempre a mesma coisa”, e talvez, em contrapartida a Ma Rainey, ele seja a ideia de conciliação. Levee não está de todo errado em sua lógica: tocar conforme os brancos querem também significa ganhar dinheiro em cima deles. Mas, ao longo do filme, a cantora é uma personagem cuja integridade atravessa intacta, ele, nem tanto. Em cena, duas interpretações gigantes cujas figuras se contrastam. A cantora é grande, seu corpo desajeitado, mas Davis a habita com uma potência plácida de quem já viu muito na vida e sabe muito bem lidar com as adversidades. O trompetista é o oposto: magrelo e frágil, ele é um fio desencapado, capaz de comprar briga com qualquer um – até com Deus, numa das grandes cenas do filme.
A peça de Wilson é uma crítica à exploração da cultura negra pelos brancos. Montada originalmente em 1984, faz parte do cânone do teatro afro-americano. Agora levada ao streaming, merecidamente, chegará a um público maior. Nas mais de três décadas que separam o original da adaptação, muita coisa sobre o assunto se modificou, mas é uma narrativa em construção perene e A voz suprema do blues tem muito a contribuir.
O fillme venceu dois Oscar: cabelo e maquiagem (Mia Neal, Jamika Wilson e Sergio López Rivera) e figurino (Ann Roth).