A história da arqueóloga Niède Guidon confunde-se com a do Parque Nacional Serra da Capivara (PI), que abriga algumas das pinturas rupestres mais antigas do mundo, indicando que a presença humana ali remonta a cerca de 50.000 anos. Por vários anos, Niède foi uma das poucas a defender que ali estavam inscrições tão antigas e sofisticadas quanto aquelas encontradas na Europa. Mas, até a pesquisadora chegar por lá, elas eram conhecidas como “pinturas de índio”, escondidas num lugar de difícil acesso, no sertão piauiense, que pouca gente conhecia e, por isso mesmo, corriam o risco de desaparecer antes de serem descobertas.
Foi quando ainda trabalhava no Museu do Ipiranga, em 1963, que a então jovem profissional organizou uma exposição sobre pinturas rupestres e teve acesso às primeiras fotos do tesouro do Piauí. Ela fez sua primeira tentativa de chegar lá, mas as chuvas impediram o acesso.
A insana caça às bruxas instalada na esteira do golpe de 1964 colocou-a em fuga para a França, terra de seu pai, onde ela se tornaria professora na École des Hautes Études en Sciences Sociales, só voltando ao Brasil em 1970.
O documentário de Tiago Tambelli aproveita muito bem o impressionante arquivo filmado da pesquisadora, dando conta das sucessivas expedições a São Raimundo Nonato, começando com a pioneira, em que ela viajou acompanhada de uma amiga, Silvia Maranca, numa Rural Willys emprestada, desbravando uma estrada de areião, guiada pelos sertanejos. Numa região sem estradas, ela, os mateiros e os pesquisadores que foram se somando à equipe multidisciplinar, tinham às vezes que caminhar 100 km, carregando seus pesados equipamentos de escavação, água e comida, enfrentando perigos como insetos – uma vez, um ataque de abelhas quase foi fatal para Niède.
Foi do trabalho destes desbravadores que emergiram as provas de que ali se encontravam materiais de idade muito superior ao que se acreditava na Europa – cerâmicas de 13.000 anos, restos de fogueiras chegando a 100.00 anos. A soma de seus esforços, liderados pela intrépida Niède, levaram não só ao reconhecimento internacional da antiguidade da ocupação da serra piauiense como à criação do Parque, em 1979, posteriormente declarado Patrimônio da Humanidade.
Ainda que dê suficiente ênfase ao trabalho exemplar da cientista, o filme não se esquiva de mostrar que a própria criação do parque, que levou a desapropriações, causou algum dano a uma parte da população local. No povoado que existia ali, com cerca de 600 habitantes, ninguém tinha registro de propriedades, o que impedia que fossem indenizados. Os sucessivos governos, por sua vez, demoraram demais para encontrar alternativas, o que, não raro, acarretou críticas e desavenças dos prejudicados em relação a Niède – houve até quem contratasse um matador para assassiná-la. Outros moradores, no entanto, foram treinados para trabalhar com ela no parque. Alguns estão lá até hoje.
Incansável, Niède – hoje com 87 anos – continua por lá, como uma criatura da serra e parte indissociável da paisagem. Mudou a cor do cabelo, hoje uma nuvem branca, a figura miúda encorpou, mas o olhar e a energia parecem intocados quando ela dirige seu jipe, a caminho do parque. Lá, ela supervisiona tudo e ainda tem paixão para falar com as crianças que o visitam, ciente como é de que a educação das futuras gerações é a única barreira consistente para garantir a proteção ao parque e seu patrimônio incomparável.