Uma das obras mais marcantes da filmografia de Stanley Kubrick (1928-1999), Laranja Mecânica volta à tela grande em São Paulo, exclusivamente no CineSesc. Trata-se de uma versão digitalmente restaurada, em DCP, recuperando a qualidade de imagens, cores, efeitos de luz e som do filme original de 1971, que foi indicado a quatro Oscar.
Num futuro próximo, líder de um bando de adolescentes ultraviolentos (e fã de Beethoven) é submetido à lavagem cerebral. Sátira social perturbadora, baseada em livro de Anthony Burgess. Indicado a 4 Oscar, inclusive os de melhor filme e diretor, é uma obra polêmica, com cenas de extrema violência.
- Por Neusa Barbosa
- 15/01/2003
- Tempo de leitura 5 minutos
Baseado no livro homônimo do autor inglês Anthony Burgess, publicado em 1962, o filme de Kubrick alcançou repercussões muito além das salas de cinema. À época de seu lançamento, foi-lhe atribuída responsabilidade, por exemplo, numa onda de agressões e estupros na Inglaterra que, supostamente, imitariam o comportamento do protagonista, Alex (Malcolm McDowell) e sua gangue, cujos integrantes eram chamados de “drugues”. Por conta disso, o próprio diretor retirou o filme de circulação na Inglaterra, país onde não circulou sob nenhuma forma, legalmente, por 27 anos, embora, ironicamente, o próprio Kubrick morasse lá.
Ambientado num futuro bem próximo, Laranja Mecânica representou sempre um retrato distópico da sociedade contemporânea e foi, em mais de um sentido, assustadoramente visionário. O herói jovem, com cara de anjo e apaixonado por música clássica, e seus amigos, que só bebem leite, todos vestidos de branco mas carregando bastões que estão sempre dispostos a usar, tornaram-se um paradigma da violência juvenil sem outra motivação que um sádico prazer em si mesma, uma violência amoral e que encontra satisfação em sua própria e assustadora selvageria. Por conta disso, Alex e sua turma foram considerados precursores dos skinheads, neonazis e punks.
Se a intenção do católico Burgess – que havia vivido na pele algumas das horríveis experiências da história, como presenciar o estupro de sua própria mulher – fora passar um recado moral, o mesmo não se diga do niilista Kubrick. O diretor não era nada otimista sobre a humanidade, nem mesmo sobre uma possível capacidade redentora da própria arte. Ele mesmo dizia que muitos dos piores nazistas eram homens cultos e sofisticados e que isso nunca fez bem a ninguém, nem a eles mesmos.
Algumas das passagens mais perturbadoras do filme, e que assinalam a autoria criativa do diretor, são justamente aquelas em que se mistura a beleza ao horror – caso de uma cena de estupro ao som de Cantando na Chuva, imortalizada por Gene Kelly no filme de Stanley Donen, ou uma briga entre gangues com uma trilha de Gioacchino Rossini.
Para Kubrick, o uso dessas músicas sublimes foi uma forma de estilizar - mas nunca atenuar - a violência na tela, criando um equivalente sensorial para a linguagem elaborada de Burgess no livro, que criou até um idioma, o “nadsat” – que significa “adolescente”, em russo – e misturava diversas línguas, russo inclusive.
Kubrick interessou-se pelo livro por ver uma íntima semelhança entre Alex e o shakesperiano Ricardo III – um personagem sedutor, apesar de sua maldade, por conta de sua inteligência, astúcia e total honestidade.
O filme custou US$ 2 milhões e foi produzido no inverno de 1970/71 quase inteiramente em locações, com poucas cenas em estúdio. Os diálogos, inclusive, foram gravados in loco. Foi a primeira vez que Kubrick escreveu sozinho um roteiro, levando quatro meses na tarefa. Fez sucesso de bilheteria em toda parte, inclusive na Inglaterra, antes de ser retirado em cartaz pelo próprio diretor – nesse país, só ficou atrás de Com 007 Viva e Deixe Morrer e O Poderoso Chefão.
O ator Malcolm McDowell, à época com 27 anos, foi sempre sua primeira escolha para o protagonista, por tê-lo impressionado em filmes como If..., de Lindsay Anderson, e No Limiar da Liberdade, de Joseph Losey.
O papel deu fama mundial a McDowell, mas custou caro, inclusive em termos físicos. Nas filmagens, ele quase se afogou, teve costelas quebradas e sofreu um arranhão na córnea por conta das hastes que mantinham seus olhos abertos na famosa sequência do “tratamento Ludovico”.
No Brasil do auge da ditadura militar, nos anos 1970, o filme foi proibido pela censura e, depois, liberado com ridículos “pontos pretos”, tentando, sem sucesso, cobrir as partes íntimas de pessoas nuas que corriam. O absurdo da situação não escondia que, pelo menos num ponto, os obtusos censores da época haviam entendido alguma coisa do filme – o potencial do arbítrio quando os poderes do Estado são levados às últimas consequências.
Se Kubrick não respeitou à risca o final da história proposto por Burgess, prevendo a redenção de Alex, ele não o fez apenas porque a edição norte-americana do livro havia absurdamente cortado esse epílogo, até porque ele o conhecia. Ao propor a equivalência da violência amoral de Alex e do Estado, que o submete a um tratamento de choque que, finalmente, o priva de identidade e livre-arbítrio, Kubrick estava colocando, sem esquecer do humor negro que encharca a história, aquilo em que realmente acreditava – que a natureza humana é ambígua em si mesma e que não há, sob o sol, nenhuma zona de conforto.
Ainda assim, ele mesmo ponderava que, apesar de toda a sua violência, o ser humano havia sobrevivido sempre, de algum modo – e que ele esperava que continuasse assim.