Um dos mais consagrados diretores japoneses, Kyoshi Kurosawa imprime a sua marca sutil neste que é seu primeiro filme de época e que lhe valeu o Leão de Prata no Festival de Veneza 2020. O roteiro é assinado por ele, Tadashi Nohara e Ryusuke Hamaguchi (diretor de Drive my Car, Oscar de melhor filme internacional 2022).
Como acontece em diversas de suas obras, o ponto de vista pertence a uma mulher, Satoko (Yu Aoi). São os anos 1940, de um crescente ultranacionalismo no Japão imperial, que logo se irá exacerbando com a entrada do país na II Guerra Mundial. Neste ambiente, despertam suspeitas as roupas e os gostos ocidentais de Satoko e do marido, o comerciante de mercadorias importadas Yusaku (Issey Takahashi), o que lhes vale advertências de um velho amigo, Taiji (Masahiro Higashide), que agora é militar.
Yusaku, no entanto, não se abala. Continua mantendo sua vida confortável, o contato com estrangeiros e viaja constantemente para fora do país a negócios. Numa dessas viagens, à Manchúria chinesa, então ocupada pelos japoneses, ocorrem os incidentes que mudam a vida do casal.
A súbita decisão do sobrinho de Yusuke, Fumio (Ryota Bando), de abandonar seu emprego na empresa do tio e o assassinato de uma jovem, Hiroko (Hyunri), quebram a redoma em que Satoko vivia encerrada, acreditando numa vida perfeita ao lado de um marido a quem julgava conhecer inteiramente. A ambiguidade do comportamento de Yusaku é a plataforma perfeita para que o filme ancore os sentimentos conflituosos de Satoko - afinal, ele é ou não um espião?
Embora incorpore um tom de denúncia, por conta de terríveis descobertas feitas por Yusaku sobre experiências com prisioneiros chineses pelo exército, a história faz uma opção preferencial pelo melodrama, fixando-se na espiral de sofrimentos de Satoko - uma jovem cuja inexperiência e ingenuidade trabalham contra ela. No perfil desta heroína trágica, Kurosawa dialoga com o cinema tradicional japonês, remetendo ao perfil de tantas outras mulheres deste passado cinematográfico notável. Ainda assim, há momentos em que ela se mostra ingênua demais.
Enriquece a trama o uso de filmes dentro do filme, afirmando a potência e a ambiguidade das imagens. Isto é feito por um trabalho amador, em 16 mm, em que Yusuke usa Satoko e Fumio como atores de uma história noir, e um filme que comprova as experiências japonesas na Manchúria, que Yusuke deseja levar para o Ocidente. Este recurso permite a Kurosawa sair um pouco do registro melodramático, incorporando um aspecto de denúncia do passado autoritário recente do Japão, que o diretor coloca em evidência com singular honestidade e espírito crítico.
É marca registrada de Kurosawa o rigor com que compõe cada plano, alimentando dentro da história o contraste entre este controle de cineasta e o total descontrole que rege as vidas dos seres humanos, a frágil Satoko mais do que ninguém.