Com o passar dos anos, convencionou-se chamar David Bowie de camaleônico. A palavra se associou a ele de tal forma que, em um certo momento, era impossível evocar seu nome sem o adjetivo ao lado. Acontece que, como todo clichê, há nisso um fundo de verdade, mas também, ao longo do tempo, perdeu-se o sentido. Moonage Daydream, um documentário, de Brett Morgen, apaixonadamente celebratório da figura e da arte dele, dá a real dimensão do que era ser camaleônico – ou, mais do que isso, como sempre Bowie estava transgredindo o nível da sua arte, elevando-a a um patamar único, o que se tornava um problema não apenas para os outros artistas, mas para ele mesmo: como se superar?
Um documentário convencional, com cabeças falantes, imagens de arquivos e uma narrativa do nascimento à morte jamais faria sentido para uma figura tão ímpar como Bowie. A saída de Morgen, que também assina o roteiro e a montagem, é um filme lisérgico, colorido, barulhento e vibrante. Embora as músicas sejam, obviamente, importantes, o centro aqui é Bowie em sua completude, seu trânsito por diversas manifestações artísticas – como no cinema (em especial, Furyo: Em nome da horna), no teatro (O homem elefante), na direção de vídeos experimentais, na pintura... – e como tudo isso se juntava no palco nas suas performances.
Numa das entrevistas de arquivo, a inglesa Mavis Nicholson é certeira ao comentar ao próprio Bowie que ela o vê como uma tela pronta para receber diversas personalidades, diversas personagens que ele vive em sua carreira. Sorrindo, o artista balança a cabeça concordando, e acrescenta que nunca quis se mostrar no palco. A verdade é que as diversas fases, do glam rock de Ziggy Stardust ao romântico apaixonado por Iman Abdulmajid, dão conta de um artista sempre em formação e transformação, dando cara a um século que esteve sempre em busca de uma identidade para chamar de sua.
A Bowie-mania, conforme mostra o documentário, era forte, seus fãs eram (ainda são), acima de tudo, devotos apaixonados – e não sem razão. De forma pouco metódica, Moonage Daydream reconstrói essa carreira, que começou no começo dos anos de 1960, com um homem de aparência andrógina, livre de amarras sociais e artísticas. Suas personas artísticas, como sua música, eram contestadoras com uma sexualidade e acordes livres.
Com mais de 2 horas, o documentário, mais do que um filme, é uma experiência cinematográfica marcada por som, fúria, colorido e moda, sempre tão presentes na arte de Bowie. Não são poucas as vezes em que o filme mergulha nos tropos da ficção científica em sua construção imagética – resgatando cenas de filmes não apenas protagonizados por Bowie, mas de Metrópolis a 2001 – Uma odisseia no espaço – como que tentando dar conta da construção de Bowie enquanto uma figura da sociedade do espetáculo.
As referências visuais são construídas de maneira aparentemente aleatória, mas que, claramente, são aquelas que recaíram sobre o próprio Bowie. Não são poucas as vezes em que uma colagem de imagens aparecem na tela, talvez de forma quase enigmática para alguns, mas estando relacionadas ao objeto do filme: Buster Keaton, James Baldwin, Aleister Crowley, Oscar Wilde... e a lista segue.
Morgen, cuja carreira deslanchou em 2000 com seu documentário indicado ao Oscar On the ropes, tem no currículo, entre outros, o belo Cobain: Montage of Heck, sobre o líder da banda Nirvana. Em Bowie ele encontra o objeto e o material para um filme delirante, que merece ser visto na maior tela possível, com o som no volume máximo. É, no fundo, um filme de fã para fã – pouco provável que alguém não apaixonado por Bowie se interesse. E, nesse sentido, ilumina uma figura querida, que, ao final, mesmo tendo se tornado um grande astro, não deixou de questionar as possibilidades da arte.