Se não há apenas um dentre os filmes da carreira de Federico Fellinini (1920-1993) que sirva por si só para dar a justa medida de seu estilo e do impacto que teve sobre o cinema do século XX, não é menos verdade que Amarcord é um dos trabalhos em que o diretor italiano melhor traduziu o significado de sua imensa e deliciosa imaginação criadora. É, portanto, um daqueles filmes em que a mistura entre humor e nostalgia, cinismo e doçura, anarquia e reflexão política melhor se afinaram e, por isso, oferece chance de interminável redescoberta.
Espírito sarcástico e zombeteiro, Fellini com certeza rejeitaria qualquer postura solene diante de seus filmes. "Não tenho nenhuma mensagem a transmitir", repetiu ele várias vezes em suas entrevistas. Portanto, é com o espírito aberto que se encontra melhor quem embarcar nas aventuras do adolescente Titta (Bruno Zanin) e seus amigos, moradores de uma pequena cidade italiana dos anos 30, que tem muito da Rimini natal de Fellini como tem de qualquer outro lugar do mundo. "Minha província é do gênero metafísico, ela pode estar em qualquer parte do mapa", advertiu ele, numa entrevista de 24/6/1973, a Stefano Reggiani, do jornal La Stampa.
Titta e seus amigos assombram a cidadezinha, dominada pelo patriarcalismo, a Igreja reacionária, o fascismo, o moralismo, o machismo e todas as mazelas provincianas e arcaicas que procuram limitar a liberdade de corpo e espírito. Em plena idade da descoberta da sexualidade, Titta e seus amigos anarquizam a escola, dominada por professores caquéticos, ao menos na visão adolescente e rebelde que indiscutivelmente guia a câmera felliniana quando os retrata.
Dentro da família, a relação não é menos conflituosa. Aurélio (Armando Brancia), o pai de Titta, é um mestre-de-obras rude, que vive às turras com os dois filhos, a quem chama na melhor das hipóteses de "delinqüentes", e Miranda (Pupella Maggio), a mulher sufocada pelo trabalho doméstico, tolera a custo o sogro um tanto esclerosado (Peppino Ianigro) e o cunhado encostado e comilão, Pataca (Nando Orfei).
O capítulo político tem especial relevância nesta crônica da vida provinciana quando desembarcam na cidade chefetes fascistas, que prendem por uma noite o pai de Titta, simpatizante socialista que a mulher tranca em casa toda vez que enxerga uma manifestação pública dos temíveis camisas-negras. Maltratado e humilhado por um comentário banal, feito na mesa de sua própria casa e denunciado pelo cunhado simpatizante de Benito Mussollini, Aurélio encarna a estreiteza e a crueldade da política que dominava a Itália naqueles dias. Numa outra entrevista, ao jornal L´Espresso, de 7/10/1973, Fellini comentou sobre o assunto: "Tenho a impressão de que o fascismo e a adolescência ainda são, de alguma maneira, estágios de nossa existência - a adolescência da vida pessoal, o fascismo, da vida nacional. Refiro-me com isso a uma forma de permanecer para sempre uma criança, de se livrar da responsabilidade, de viver com o consolo de sempre ter alguém a quem cabe pensar, uma vez é a mãe, outra o pai, outra o Duce, Nossa Senhora ou o bispo - em todo caso, são sempre os outros". Se Fellini vivesse na Itália moderna comandada por Silvio Berlusconi, não poderia ter dito melhor.
Fora do foco da família de Titta, o filme revela a vida desta pequena cidade, acompanhando pequenos incidentes, alguns cômicos, outros patéticos. Há funeral, casamento, desfile das novas prostitutas, a voltinha na praça, o drinque no bar, a parada política. Na verdade, é a aldeia o grande personagem desta obra que pulsa em cada uma de suas criaturas, particularmente as que acendem as fantasias masculinas - como a sensual Gradisca (Magali Noël), a ninfomaníaca Volpina (Josiane Tanzilli), a volumosa funcionária da tabacaria (Maria Antonietta Beluzzi), que protagoniza talvez a seqüência mais hilariante do filme, com o jovem Titta. Tão inesquecível quanto esta cena, é o inesperado surto do tio maluco de Tita (Ciccio Ingrassia), subindo numa árvore aos gritos de "eu quero uma mulher!" e só descendo depois da chamada enérgica de uma freira anã do sanatório onde ele vive internado.
O filme, que era para ter se chamado Il Borgo (a cidade) e L´Uomo Invaso (o homem invadido), refere-se a uma expressão no dialeto da Romagna natal de Fellini que significa: "eu me recordo". Mas, ainda aí, há que contar com a irresistível rebeldia do diretor, que não cultuava a memória em si, nem a nostalgia em particular. Ele, que tantas vezes mentiu em suas entrevistas, fazendo ironia diante do despreparo ou da excessiva credulidade de tantos de seus entrevistadores, provavelmente nunca foi tão sincero quanto disse: "Represento as coisas tal como são, ou foram. Ou melhor, eu as relato como as vejo", disse a Claude Baignères, do Le Figaro Littéraire, em 10/3/1973. Amarcord é uma das melhores expressões deste olhar verdadeiramente original.
Cineweb-10/1/2003