A vida de plástico já não é mais tão fantástica no filme da Barbie. Apesar de viver na Barbielândia, uma utopia feminista, a protagonista começa a ter uma crise existencial – algo, que, segundo o filme, não faz parte da perfeição. Dirigido por Greta Gerwig, o longa é uma montanha russa com altos e baixos, um humor cínico, mas partes mal resolvidas e uma contradição inerente que seria impossível ser superada de qualquer forma.
Escrito por Gerwig e seu marido Noah Baumbach, o filme é perfeito em sua construção de um mundo sem arestas, onde todas as mulheres, as Barbies, estão em situação de poder, e o homens, os Kens, não têm noção de sua posição inferior – nem casa eles têm. E está tudo bem. Partindo da linha de brinquedos da boneca – vendidos separadamente, claro –, a direção de arte impressiona com a riqueza de detalhes. Da Casa dos Sonhos da Barbie ao seu carro e a praia, onde um dos Kens trabalha. E seu trabalho é ficar na praia – ele não é salva-vidas, não é surfista, nem nada, apenas fica na praia. Esse personagem é interpretado por Ryan Gosling de maneira impressionante – ele nasceu para esse papel.
Mas haverá problemas no paraíso, quando durante uma festa – todos os dias acabam em festa – a Barbie Estereotipada (Margot Robbie) tem um pensamento estranho. “Vocês já pensaram em morrer?”. Todos se assustam com a pergunta, mas, enfim, ela dá uma desculpa e a balada segue em frente. Porém, o dia seguinte já não começa perfeito para ela: o chuveiro não esquenta, a torrada em forma de coração queima e, o pior, quando desce do salto alto, seus pés ficam retos. Não há mais aquela curvatura para cima, que, na vida real, acaba com a coluna de qualquer humano ou humana.
É aí que as coisas começam a ficar mais interessantes no filme. Se até então era muito engraçado, agora é engraçado e com uma complicação. Barbie Estereotipada precisa ir para o Mundo Real, encontrar a criança que brinca com ela e resolver esse problema. Ela embarca na jornada, e Ken acaba indo junto. O choque é que, no outro lado da fronteira, nada é como ela imaginava. Como diz a narradora (Helen Mirren), no começo do filme: o feminismo resolveu todos os problemas, e a boneca Barbie é um exemplo de empoderamento que levou as mulheres exatamente ao poder. E é nisso que Barbie acredita – pois é assim em sua terra.
Nessa trama, o filme se transforma numa sucessão de acertos e erros. Gerwig usa a sátira para criticar o nosso mundo, governado pelo patriarcado. Aqui, a Barbie descobre que tudo é como na Barbielândia, mas ao contrário, ou seja, as mulheres são exploradas e oprimidas. É uma tremenda sacada a maneira como o filme lida com isso, mas sua repetição o tempo todo acaba banalizando a estratégia. A todo momento acontece algo que insiste na afirmação da opressão.
No mundo real, Barbie também irá à Mattel, presidida por, para sua surpresa, um homem, interpretado por Will Ferrell. Essa é a parte do filme que é mais mal-resolvida. Novamente, a ideia é mostrar a supressão e a opressão da mulher. Entre outras coisas, é um homem que toma decisões sobre a aparência de uma boneca criada por uma mulher – da mesma forma que os políticos (a maioria homens) decidem sobre os corpos femininos e, por exemplo, proíbem o aborto.
Gerwig tem claramente a melhor das intenções aqui: criticar (de leve) e divertir (bastante). Colocar a Mattel como vilã parece ousado, mas, ao mesmo tempo, é apenas uma distração para o que realmente importa. O que oprime, na verdade, é todo o sistema, e a fábrica de brinquedos é só mais um agente lucrando com isso. Mas, como tocar nessa ferida – na palavra capitalismo – se o filme é bancado pela fábrica de brinquedos e um grande estúdio, a Warner?
Pois é, há essa contradição que amarra o filme. Gerwig não pode, não quer ou nem se deu conta (isso já é pouco provável), que o buraco, como se diz, é mais embaixo. Não há como implodir o sistema, não inventaram a Barbie Anarcofeminista ainda. A saída é encontrar uma conciliação, agradar a todos os oprimidos e os opressores (que disfarçadamente mantêm seus privilégios, e o filme diz isso literalmente), e no fim, todos lucram. Mas, como a greve dos atores e escritores atual escancara, a diretora lucrará bem menos do que os executivos que só bancaram o filme, embora quem tenha feito o trabalho duro foram ela e sua equipe.
O filme venceu um Oscar - canção original (What Was I Made For?), o segundo da cantora e compositora Billie Eilish.