Nos anos 1920, Jakob é um respeitado capitão de navios que se ressente da solidão. Um dia, num café em Paris, conversa com um amigo sobre casamento e, impulsivamente, promete que se casará com a primeira mulher que entrar pela porta. Quem entra é Lizzy, uma jovem bela, independente e imprevisível, com quem ele manterá um relacionamento cheio de incertezas.
- Por Neusa Barbosa
- 13/06/2023
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Consagrada por filmes como Corpo e Alma (vencedor do Urso de Ouro 2017) e Meu Século XX (ganhador do Caméra D’Or em Cannes 1989), em que assinava roteiros próprios, a cineasta húngara Ildikó Enyedi arrisca-se numa adaptação literária em A História da Minha Mulher. Partindo do romance do autor Milán Füst (1888-1967), a diretora retrata o conflituoso casamento entre a misteriosa Lizzy (Léa Seydoux) e o capitão de navio Jakob Störr (Gijs Naber).
Numa história de época, ambientada nos anos 1920, desenha-se a inusitada trajetória de uma união nascida do mero acaso. Desejoso de casar-se, sem um plano definido em mente, o capitão declara a um amigo, Kodor (Sergio Rubini), que esposará a primeira mulher que entrar no café onde se encontram. E, contra toda a expectativa e a voz da razão, fará exatamente isso.
Quem entra pela porta é Lizzy (Léa Seydoux), uma jovem bela e imprevisível, cujo mistério paira sobre toda a trama. Vista pelos olhos deste marido impulsivo e apaixonado, Lizzy permanecerá também misteriosa aos olhos dos espectadores do filme que, sem poder contar com a versão dela, terão de filtrar as percepções de Jakob.
Nisto está o encanto e também o risco do filme, em que a diretora não se mostra tão solta quanto em seus trabalhos anteriores, talvez preocupada em manter algum tipo de fidelidade à estrutura do romance - a partir da divisão da narrativa em sete capítulos. Esta opção engessa um pouco a fluidez das emoções oscilantes deste par, que começam pela aventura da novidade mas não tardam a incorporar o veneno da dúvida, já que Lizzy é uma mulher um bocado livre para os padrões de sua época e também para as expectativas do marido.
A partir das lembranças de Jakob, reconstitui-se essa relação entre dois desconhecidos, que se casaram aleatoriamente sem as amarras de outro tipo de compromisso e se mantêm juntos através de um jogo de sedução com vários componentes, entre os quais um nada desprezível desejo de controle mútuo.
Numa história de época, ambientada cerca de 100 anos atrás, certamente se infiltra uma visão de mulher de outros tempos - e não seria mesmo justo enxergar Lizzy fora de seu contexto, como uma mulher livre que mantém relações ambíguas com homens como o escritor Dedin (Louis Garrel), entre tantos outros amigos e amigas de um círculo social em que o capitão sente-se pouco à vontade.
A fotografia (de Marcell Rév) percorre os navios que Jakob comanda e as cidades em que o casal mora, particularmente Paris e Hamburgo, de modo elegante, límpido e situando as diferenças dos universos dos personagens e a dualidade invencível de sua condição, ela na terra, ele quase sempre no mar.
Léa Seydoux interpreta esta mulher misteriosa com verve e delicadeza, escandindo sua fragilidade e sedução sem desfazer sua opacidade. Ao final do filme, saberemos tanto quanto Jakob do que era feita sua compleição e, como ele talvez, sentiremos que deixamos de perceber tantas coisas enquanto ela esteve ao nosso alcance.