04/12/2024
Drama

Assassinos da lua das flores

Mesmo dona de sua terra, recebendo altos dividendos de seu petróleo, a comunidade Osage é tutelada por brancos como o sub-xerife e criador de gado Hale - que recebe seu sobrinho Ernest e o convence a casar-se com uma mulher indígena, Mollie. Misteriosos assassinatos dos nativos estão apavorando a região. Na Apple TV (a partir de 12/1).

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O grande novo filme de Martin Scorsese, que adapta livro de David Grann sobre fatos reais, é não só um olhar para o massacre de indígenas da nação Osage nos anos 1920 como um diagnóstico sobre a continuidade daquilo que Hannah Arendt tão bem definiu como “a banalidade do mal” - com questionamentos complexos, através de seus esplêndidos protagonistas, William Hale (Robert De Niro, numa das melhores interpretações de sua carreira) e seu sobrinho, Ernest Burkhardt (Leonardo DiCaprio). Que, no caso, são os vilões da história. 
 
Todo-poderoso no território Osage, onde cria gado e é sub-xerife, Hale é uma figura paternal, respeitado por indígenas que ele chama de amigos, mas também a inteligência maligna por trás dos sistemáticos assassinatos que colhem a vida do povo originário - que é o detentor dos ricos dividendos do petróleo de sua terra mas segue tutelado pelos brancos. 
Ernest, por sua vez, é o sobrinho tosco, ignorante e frágil, dependente do tio, e que se torna facilmente manipulável por ele como seu cúmplice e operador no roubo aos indígenas - inclusive casando-se com uma delas, Mollie (a extraordinária Lily Gladstone, vencedora do Globo de Ouro). 
 
Sistematicamente aniquilados, os Osage pagavam assim o preço de constituir-se no oposto ao protótipo atribuído aos povos originários. Ou seja, eram ricos e poderosos, circulando por suas terras a bordo de carros elegantes, conduzidos por choferes brancos - como Ernest, que se aproxima de Mollie tornando-se seu motorista. 
 
O roteiro, assinado por Scorsese e Eric Roth, distancia-se por completo de uma trama policial que pretendesse criar mistério sobre os autores e mandantes dos assassinatos, como acontece no livro de Grann. Desde cedo no filme, sabe-se que Hale está por trás dessa mortandade violenta, com a cumplicidade passiva do sobrinho, o que aponta para as intenções de Scorsese - desnudar os ambíguos laços que unem estes dois imorais, um ativo e cerebral, outro passivo mas não menos culpado. Por conta desse caráter dúbio, este é talvez o papel mais arriscado da carreira de DiCaprio, que recusou o convite de Scorsese para um outro mais heroico, do agente do FBI Tom White (assumido com sutileza por Jesse Plemons), embora aqui não se trate de nenhum “salvador branco” - é apenas um representante das instituições do Estado que deveriam ter atuado bem antes e bem melhor para prevenir a mortandade dos donos desta terra. 
 
Retratar os indígenas como as reais vítimas é também uma espécie de resposta a tantos faroestes antigos, inclusive clássicos, nos quais lhes cabia unicamente a função de matadores cruéis e sem identidade própria - uma inversão que contribui para restabelecer sua humanidade, seu lugar no mundo. Para representar esta identidade, resplandece o talento de Lily Gladstone, uma das grandes descobertas deste filme e a mais notável de uma rica galeria de personagens indígenas. 

Produzido em total sintonia com a comunidade Osage, Assassinos da Lua das Flores ergue uma ponte para a contemporaneidade com esta história de mortes em série por muito tempo ignoradas e, ainda hoje, sem a devida repercussão num país em que o racismo sistêmico permanece um dramático problema. Por tudo isso, Assassinos da Lua das Flores, promete ocupar o centro de muitas futuras discussões, inclusive sobre a formação dos EUA como um país violento e obcecado pela luta por poder e riqueza. Depois de sua obra-prima, O Irlandês, Scorsese fez um outro filme à sua altura.
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