Paul é um ator que ensaia uma nova montagem da peça russa "Tio Vânia", de Tchecov. Mas tudo vai de mal a pior, inclusive seus sentimentos e vida pessoal. Ele então descobre que há uma empresa especializada em extrair e estocar almas e resolve tentar viver sem a sua. Aí descobre que não é tão simples como imaginava.
24/06/2010
Diretora estreante, a francesa Sophie Barthes pega emprestadas inspirações variadas, do escritor russo Nikolai Gogol ao diretor e roteirista norte-americano Charlie Kaufman para o criativo roteiro deste seu primeiro longa, Almas à venda.
Mistura de comédia, drama e ficção científica, o filme embarca numa premissa bem imaginativa – literalmente, o tráfico de almas. Para aqueles cansados das próprias e dos tormentos que elas causam, há uma empresa em Nova York especializada, nada mais, nada menos, do que na extração e estocagem das almas. Mediante um módico pagamento, é claro. Caso alguém queira recuperar a sua depois, é só avisar. Na prática, como se verá, não é tão simples, ainda mais que há uma linha de mercado negro via Rússia.
Ator, Paul Giamatti (usando o próprio nome para o seu personagem) está ensaiando uma nova montagem da peça Tio Vânia, o clássico do dramaturgo russo Anton Tchecov. Mas seu trabalho não está progredindo bem e ele, mais do que ninguém, sabe disso. A conselho de seu agente, pesquisa um anúncio na revista The New Yorker ( o que é a primeira piada do roteiro com a sisudez desta publicação), da tal empresa que lida com almas.
Descrente a princípio, Paul procura os serviços do dr. Flintstein (David Straithairn) para livrar-se da alma que está lhe provocando tanto sofrimento – pavores noturnos, angústia existencial, medo, crise com a mulher (Emily Watson). Todos sintomas muito sérios e reais da angústia da meia-idade, ou mesmo, da angústia de estar vivo em qualquer idade, dependendo do temperamento.
A grande sacada do filme está em equilibrar a seriedade, quebrando-a frequentemente com os detalhes inusitados. Como a decepção de Paul ao descobrir que sua alma, pobrezinha, é pequena como um grão-de-bico. O que não contribui em nada para elevar sua auto-estima.
Outra boa ideia da história está em contrapor a empresa burocrática e ultra-organizada dos EUA com o circuito russo, envolvendo um lucrativo comércio e contrabando de almas da pátria de Tchecov. Para esse tráfico, usa-se uma “mula”, Nina (Dina Korzun), que carrega as almas para o outro lado do oceano, atendendo às demandas de norte-americanos dispostos a trocar de personalidade por esse meio.
As desventuras de Paul e Nina vão, futuramente, cruzar-se, permitindo ao filme tomar rumos líricos, trágicos e cômicos. Algumas de suas peripécias podem eventualmente lembrar os filmes escritos por Charlie Kaufman – como Quero ser John Malkovich e Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. Mas, antes de mais nada, a inspiração é mesmo russa. Afinal, em 1842, o autor russo Nikolai Gogol imaginou já, em seu livro Almas Mortas, um rico proprietário que comprava as almas de seus servos.
Em mais de um momento, Paul Giamatti – vencedor do prêmio de melhor ator no festival de Karlovy Vary em 2009 – lembra uma vulnerabilidade semelhante à de Woody Allen em alguns de seus melhores filmes, como Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e Hannah e suas irmãs. Mais uma vez, não foi um acaso. Afinal, a primeira idéia da diretora e roteirista foi convidar Allen para o papel. Mas não o fez, por entender que ele nunca aceitaria atuar num filme de cineasta estreante.
Giamatti, em todo caso, tornou Almas à venda totalmente seu, dando credibilidade a uma história difícil, que depende da total cumplicidade entre seus intérpretes e o público para fazer sua premissa fantástica funcionar. E, como acontece em diversos trabalhos de Giamatti, mais uma vez, a mágica acontece. Está aqui um dos filmes mais originais da temporada.
Neusa Barbosa