No sertão de Minas Gerais, Seu Pedro, um garimpeiro de 80 anos, mantém vivas tradições antigas – como alguns ritos funerais. No filme, ele conta histórias, canta vissungos e fala sobre a vida na Chapada – mas o que é verdade? O que é causo? O que é encenação?
29/09/2010
Grande vencedor do festival de documentários É Tudo Verdade em 2010, Terra Deu, Terra Come é um mergulho no sertão profundo, na terra mítica retratada pelo escritor Guimarães Rosa em livros como Grande Sertão: Veredas. Pactos com o diabo, vocabulário e paisagens parecem saídos diretamente do universo do romancista mineiro e se materializam no filme de Rodrigo Siqueira.
O que conduz o filme são os ritos fúnebres prestados a João Batista, homem bom, casado e sem filhos que morreu aos 120 anos. Seu velho amigo, Pedro de Alexina, é o responsável pelas homenagens. Garimpeiro, ele é uma figura inesquecível e carismática, que domina o filme de ponta a ponta com suas histórias que oscilam entre a verdade, a representação e a brincadeira.
Siqueira e sua equipe se entrosam de tal forma com Seu Pedro e a família que parece nem haver uma câmera ao redor deles enquanto se despedem de João Batista com cantos, rezas e velas. Terra Deu, Terra Come funciona tão bem que nos faz esquecer que é um filme, parece mesmo apenas a realidade pura. Mas o que é a essência do gênero senão captar a vida sem maquiagem? Neste sentido, o filme é de uma poesia imensa, dando liberdade para que aquelas pessoas sejam elas mesmas e mostrem rituais tão belos quanto peculiares, que correm o risco de desaparecer.
A bonita fotografia de Pierre de Kerchove capta as imagens das pessoas e da paisagem local dando a ambos a mesma dimensão. Já a edição, assinada pelo diretor, é meticulosa ao adicionar camadas e mais camadas que revelam um mundo distante, mas, ao mesmo tempo vibrante, pulsando vida, humor e uma certa ingenuidade que ainda não foi contaminada pelo cinismo contemporâneo.
Nesse ambiente, às vezes, disputas se resolvem com tiros. Corpos são reclamados pelo diabo por conta de contratos e as pessoas dizem “nonada” (exatamente a primeira palavra de Grande Sertão: Veredas). Por isso, entre outras coisas, é que Terra Deu, Terra Come é uma viagem, convidando a um mergulho nesse universo tão peculiar que é desvendado pela câmera e iluminado pelas pessoas e suas histórias.
É Seu Pedro quem domina o filme. Sua presença é magnética, ele atrai a câmera e as atenções com sua fala que nunca para, sempre repleta de boas histórias. Ele é uma das últimas pessoas a conhecer os vissungos – cantos num antigo dialeto, o banguela, usado nos cantos de trabalho nas minas de ouro e diamantes e nos rituais fúnebres.
A certa altura, Seu Pedro surge com uma máscara de papelão e incorpora um outro personagem. Quem é essa figura e o que ela representa é algo que vai sendo descoberto. Aliás, Terra Deu, Terra Come é um filme repleto de surpresas. Se fosse uma ficção, diríamos que tem uma reviravolta final que muda tudo aquilo que se viu até então. Por isso, revisões do filme só terão a acrescentar aos espectadores.
A premiação do filme no É Tudo Verdade foi a consagração de um tipo de documentário ousado, que não quer apenas informar, mas questionar, ultrapassar os limites da linguagem cinematográfica – como tem feito o diretor Eduardo Coutinho. Terra Deu, Terra Come é uma espécie de primo de filmes como Jogo de Cena, de Coutinho, capaz de fazer o público reavaliar o poder do cinema e a arte da manipulação.
A intersecção entre o mundo radiografado por Siqueira e o sertão de Guimarães Rosa rompe fronteiras e dá a Terra Deu, Terra Come um apelo universal, exatamente por falar do ser humano. Um assunto que nunca deixa de ser interessante, especialmente quando é tratado com tanta sensibilidade e sagacidade como neste documentário.
Alysson Oliveira