O longa Sideways - Entre Umas e Outras começa e termina com alguém batendo na porta de um apartamento. Mas, nas duas horas que separam uma batida da outra, muitas coisas acontecem e os personagens já não são mais os mesmos. Principalmente Miles Raymond (um impecável Paul Giamatti), um escritor fracassado e depressivo que sublima todas as suas emoções e sentimentos degustando vinho.
Ao lado de seu amigo Jack (Thomas Haden Church), um decadente ator de TV, Miles embarca numa viagem de uma semana pelo Vale Santa Ynez, na Califórnia. Essa será uma espécie de última semana de liberdade da dupla, afinal, Jack se casa no sábado seguinte. Enquanto Miles encara esta semana como uma oportunidade para provar muitos vinhos e conhecer novos restaurantes - e driblar a ansiedade de aguardar a resposta de uma editora que pode ou não publicar o seu livro -, seu amigo vê nesses dias a última oportunidade de ficar com diversas mulheres antes de se amarrar de vez.
E os dois caem na estrada. As diferenças entre os amigos começam a ficar cada mais evidentes. Em uma das primeiras vinícolas que visitam, Miles ensina os procedimentos para se apreciar um bom vinho, como respirar fundo dentro da taça, incliná-la para ver as bordas do líquido, balançá-la para que a bebida seja arejada. Jack faz tudo isso com um certo estranhamento. No fim, quando bebe o vinho, está com um chiclete na boca - para desespero de Miles.
Entra em cena uma dupla de garçonetes que poderá mudar a vida dos dois. Maya (uma luminosa Virginia Madsen) trabalha no restaurante preferido de Miles; e Stephanie (Sandra Oh, que é mulher do diretor do filme, Alexander Payne) serve vinhos em uma vinícola. Jack, com seu jeito de galã, parte para cima de Stephanie, com sucesso. Miles, por sua vez, ainda muito traumatizado com sua separação (embora faça dois anos), não sabe ao certo como agir com Maya.
A partir de então, o diretor Alexander Payne vai entrando delicadamente nas relações humanas entre os personagens. Miles e Maya têm uma paixão latente, que demora a se consumar. O primeiro beijo, por exemplo, custa a acontecer, os dois vão procrastinando, falando de vinhos, das relações que já viveram.
A filmografia de Alexander Payne é um verdadeiro mapa do inferno das almas perdidas - embora todas, até então, estivessem localizadas no Nebraska (estado natal do diretor). Ruth Stoops, protagonista de Ruth em Questão (1996), era uma viciada grávida pela enésima vez que se via em meio a uma quase guerra de grupos pró e contra o aborto. McAllister (Matthew Broderick), de Eleição (1998), era um professor que teve sua vida praticamente destruída por ousar se colocar no caminho de uma aluna ambiciosa. Warren R. Schmidt (Jack Nicholson) também conheceu o caminho da perda e redenção em As Confissões de Schmidt (2002) pelas mãos de Payne.
Em Sideways não poderia ser diferente - embora esse seja o primeiro filme que não se passa no Nebraska (mas, parece que Payne sentiu saudades do lar, pois seu próximo longa se chama Nebraska). Miles comete aquele que é o maior crime para a sociedade norte-americana: ser um loser. Mas nem por isso está infeliz ou tentando mudar radicalmente a sua condição. É nesse ponto que o longa se afasta ainda mais dos típicos representantes de Hollywood. O personagem não quer publicar o seu livro para ser famoso, rico e ter muitas mulheres. Ele quer ser escritor porque ama essa profissão, porque tem jeito com as palavras.
Um outro cineasta poderia ter optado trabalhar com grandes astros após a aclamação crítica e os prêmios de Schmidt. George Clooney estava interessado no papel de Jack, mas foi recusado por ser famoso demais. Payne optou por Haden Church, mais conhecido nos EUA por causa de seu trabalho em séries de TV - exatamente como o seu personagem.
Após um trabalho brilhante em Anti-herói Americano, Giamatti consegue, novamente, dominar a cena, no papel do escritor frustrado e depressivo, criando uma meia dúzia de momentos antológicos - embora a Academia não tenha reconhecido isso, negando-lhe uma indicação ao Oscar.
O roteiro, escrito por Payne e seu colaborador de costume, Jim Taylor, é baseado no romance homônimo de Rex Pickett. O escritor, por sua vez, tem um passado bem parecido com o do seu personagem, Miles. Depois de ser rejeitado por diversas editoras, Pickett estava quase desistindo, quando os originais de seu livro foram parar nas mãos de Payne, que comprou os direitos para o cinema, e o livro acabou achando um editor. Sideways, o livro, foi publicado nos EUA poucos meses antes de o filme estrear lá, em outubro.
Outro esquecimento no Oscar foi a competente trilha sonora de Rolfe Kent (Meninas Malvadas). Com um quê de jazz, acaba criando um clima despretensioso e leve, e que, de tão sincronizada com o filme, muitas vezes passa despercebida, parece até música ambiente das vinícolas.
O longa foi indicado a cinco Oscars: filme, diretor, ator coadjuvante, atriz coadjuvante e roteiro adaptado.
Como quando Miles está explicando a Jack como analisar um vinho, ele fala para prestar atenção nas bordas (sideways). O mesmo acontece com o cinema norte-americano dos últimos anos. É melhor prestar atenção no cinema independente, que tem rendido os melhores produtos das últimas safras.