Numa narrativa sofisticada, que oscila entre vários tempos, ela localiza os dois protagonistas: Miguel (na fase adulta, interpretado por Caco Ciocler) e Jorge (Flávio Bauraqui). Miguel é o menino de classe média, que cresce para ser intelectual e militante da guerrilha e em plena ditadura, vira preso político na Ilha Grande (RJ). Naquele presídio, ele reencontra Jorge, filho de sua empregada. Os dois cresceram juntos na mesma casa e agora serão as duas pontas desta realidade. Miguel, o intelectual organizador, Jorge, o instintivo e prático, dono da sabedoria das ruas.
É um período crucial esse que foi vivido na Ilha Grande. Pela convivência entre presos políticos e comuns, acabou nascendo ali uma organização diferente, um mundo com regras que não pertenciam habitualmente às prisões. Com decisões tomadas coletivamente, greves de fome de protesto e proibição de drogas, por algum tempo aquele se tornou um universo insolitamente ordenado, enquanto a aspereza da ditadura corria solta do lado de fora.
O momento mais cruel é a fase seguinte, quando as noções de política ensinadas aos presos comuns inspiram-nos à organização da criminalidade em facções, que hoje comandam o tráfico de armas, drogas, etc. Em outras palavras, o crime organizado com todo o seu brutal impacto sobre a sociedade. Um dos detalhes poderosos do filme é mostrar a menina Juliana (Maria Flor), filha de Miguel, subindo voluntariamente o morro, atraída por um jovem chefe do tráfico, Deley (Renato Souza) – um relacionamento que nasceu no roteiro a partir de entrevistas de pesquisa realizadas pela equipe do filme com meninas de classe média. O melhor é que a análise dessa atração com todos os componentes para ser fatal é conduzida sem moralismo, com uma lucidez admirável.
Da mesma maneira, o filme expõe as atuais contradições de Miguel (na meia-idade, interpretado por Werner Schünemann), quando, advogado, negocia a instalação de um projeto social na comunidade comandada por seu velho amigo Jorge (Antônio Pompeo) de uma cela na cadeia. Pontuando este retrato visceral do Brasil moderno, expondo também a inoperância da esfera política, o filme é um pungente momento de reflexão, a que não faltam, sabiamente, nem humor, nem esperança. Lúcia Murat fez um filme belo, forte, triste e necessário.